27 de outubro de 2013

O incesto

Totem e Tabu – Prefácio à Tradução Hebraica
“Nenhum leitor [ da versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio a religião de seus pais – bem como a qualquer outra religião – e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘desde que abandonou todas essas características comuns a seus compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito grande e, provavelmente a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito científico” (Freud, 1930)

No IV Congresso Brasileiro de Psicanálise, que teve como tema: SER CONTEMPORÂNEO: Medo e Paixão realizado em setembro 2013 comemoraram-se os 100 anos da obra de Freud Totem e Tabu. Neste excelente escrito Freud discutiu sobre o horror ao incesto, ambivalência emocional em função do tabu e nesta questão o tratamento dos inimigos, o tabu relativo aos governantes, o tabu em relação aos mortos.  Lendo estudos arqueológicos falou sobre animismo, (princípio vital e pessoal, chamado de anima, o qual pode significar energia, espírito e alma) e na sequencia discutiu sobre  magia e a onipotência de pensamentos. Falou sobre a origem do totemismo ( nominalista, sociológico e psicológico) e sobre o retorno do totemismo na infância. No final relaciona a origem da exogamia com o totemismo. Um livro complexo, polêmico, tanto que justificou um prefácio primoroso a tradução hebraica. Dito isso faz necessário relembrar o termo “Tabu”: “Tabu’ é um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele, desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre os antigos romanos, cujo ‘sacer‘ era o mesmo que o ‘tabu’ polinésio. Também o ‘ayos’, dos gregos e o ‘kadesh’ dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‘tabu’ pelos polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África (Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central”(Freud, (1913-1914) p.37). Trazer para a contemporaneidade os temas abordados nesta obra não é tarefa fácil, mas necessária pelo alcance da mesma e por perceber o quão longe pensou Freud. Faremos esse percurso por etapas e com possíveis idas e vindas. Os mitos sempre habitaram e habitarão nossa existência, pois nossa percepção interior é enigmática, estimulando fantasias e ilusões. Quando pensamos em tabus, parece algo do passado, mas sempre existiu e sempre existirá entre nós, pois não deixa de referir-se a proibições, imperativos categóricos, leis, que não podem ser rompidas. Nossas instituições modernas passaram em outras épocas pela cultura do totemismo e seus resquícios permanecessem na sociedade que vivemos. Aproximar totem e tabu  é uma forma de tentar compreender a complexa realidade que vivemos aproximando-a de seus primórdios.

Desde os tempos primeiros o horror ao incesto esteve presente na vida do homem. Várias foram às formas criadas pelo homem para conviver com essa questão refletida em todas as formas de arte, religião, lendas, atitude para com a vida e dos modos de pensar que sobreviveram ao tempo e que fazem parte da sociedade que vivemos e de nossos costumes. Sendo os selvagens do passado, muito temos caminhado em nossa vida mental, mas cada sociedade com suas especificidades no planeta. Desde nosso passado primitivo, os seres humanos, estabelecem para si e seus grupos comunitários, clãs, as mais severas e escrupulosas leis no sentido de evitar as relações incestuosas. O totem é uma forma de expressão da espiritualidade de cada povo. “O que é um totem? Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã” (Freud, p. 21). O totem ocupa assim um espaço e uma forma de manifestação religiosa, sobrepondo a filiação e as relações consanguíneas, pois vigora com grande ênfase a lei contra o casamento e relações sexuais entre pessoas do mesmo totem.

A necessidade de se relacionar sexualmente com outro, fora do totem leva a hipótese de pesquisadores que aqui estaria a origem da exogamia, das relações sexuais e casamentos fora do clã. A violação dessas leis é punida com a perseguição, morte e tortura. Nos tempos atuais há um “ignorar por medo da exposição pública”, da cultura da liberalidade, com exceção dos casos que são abordados pelo Direito, principalmente o abuso sexual na infância. Nos tempos tribais, no caso de um casal de clãs diferentes com totens diferentes os filhos herdarem o totem da mãe faz com que não seja possível manter relações sexuais com a mãe ou irmã, sendo relações incestuosas e punidas com a morte. Assim é que se inicia a exogamia. Todos nascidos dentro do mesmo totem são parentes consanguíneos, portanto proibido as relações sexuais. A substituição do parentesco consanguíneo pelo parentesco totêmico amplia a proibição do incesto, que abrange não só aos parentes consanguíneos, mas a todos os que venham a fazer parte do grupo consanguíneo e totêmico. Nos dias atuais é comum ver-se o cunhado relacionar-se sexualmente com a irmã de sua esposa ou namorada, bem como a cunhada relacionar-se sexualmente com o marido ou namorado de sua irmã. Há casos de namoros de mãe e filha com o mesmo homem. A sociedade atual vê com liberalidade.

Até o nosso atual sistema de parentesco, muitas foram às formações de parentesco, através de leis, que não a consanguínea, e dos primeiros sistemas de casamentos em grupos. “O matrimônio grupal precedeu, dessa maneira, o casamento individual” ( Freud, p.26). A exogamia, a estruturação das classes matrimoniais contribuiu na prevenção do incesto influenciando o declínio da influencia do totem,  possibilitando a transição para os sistemas religiosos, que incorporariam a proibição ao incesto e na sequência a sociedade do Direito. A severidade dos costumes, separando o menino da mãe e irmãs, afastando qualquer convivência possível, à medida que cresce, principalmente da parte da mãe e da mesma forma o afastamento das irmãs e irmãos significa “a penalidade para o incesto com uma irmã a morte por enforcamento” (Freud, p. 29). Da mesma forma entre cunhados e cunhadas e entre genro, nora e sogra e sogro. Todas as medidas protetoras contra o incesto não foram e não são exequíveis no sentido deste não acontecer. Há outras implicações que diz respeito à estrutura e funcionamento psíquico do sujeito e suas experiências infantis que podem ser determinantes.

Muitas vezes os sentimentos cruéis, sádicos são substitutos de desejos proibidos, por que as escolhas de objeto de amor são escolhas infantis proibidas, que não foram simbolizadas. É a filha que escolhe a mãe ou o pai ou o irmão ou irmã. É o filho que escolhe a mãe ou o pai ou a irmã ou irmão como objeto de desejo, transitando entre a fantasia, o simbólico e uma passagem ao ato. Inconscientemente essa é uma escolha que desencadeará conflitos e punições. Assim objetos externos são escolhidos como substitutos, modelados, adequados, de forma que a história genealógica de sua escolha não possa ser relembrada. Esse deslocamento na idade adulta pode ocorrer primeiro pela sogra ou pelo sogro antes dos destinos “finais”, dos pares que se formaram. Como é sempre um enigma a escolha dos primeiros objetos sexuais, pois muitas são as contingências, subjetividades, funções, e lugares ocupados, desejos simbolizados, sublimados ou não, o que possibilita retornos e tudo que deriva, ou seja, conflitos, fantasias, afastamento da realidade, sofrimentos. O fato é que o incesto não está na ordem do Direito e sim de uma estrutura patológica, que por não incorporar a lei, e ao romper com ela, rompe o equilíbrio psíquico já tão fragilizado, gerando sofrimentos tortuosos, difíceis de serem acalentados.

Referências
FREUD, S.  – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS (1913 – 1914),  Obras Completas de Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

Nenhum comentário: