30 de novembro de 2017

Voz e palavra é música


A natureza possui uma linguagem, que lhe é própria. Então Todos os seres no planeta são nossos irmãos, o minúsculo inseto, cumpre a lei e sua função, seu dever no tempo e no espaço. O que denominamos recursos como a água, rios florestas montanhas, vales e até o que denominamos por raça, mais evoluída no planeta, ou seja, o homem, que se utiliza do que ele denomina inteligência, para destruir o outro, a natureza, que nada mais é do que ele mesmo, destruído assim seus irmãos, sua casa, como se a lei do universo, não fosse uma lei de causa e efeito, onde a destruição de suas ações, seu desejo de poder, sua arrogância nas palavras e ações, não ressoasse sobre si mesmo, pelas palavras que proferiu, pelas ações que executou.

Nessa existência que vivemos as palavras, nos humanizou, e nos acompanha, qual sombra, pela sonoridade, pelas ideias, e sentimentos que emitem ou são o espelho de sentimentos intraduzíveis. Escutá-las ou lê-las encontramos sonoridades diferentes, pois quem escuta em uma subjetividade, pode ler em outra subjetividade. A palavra pode ser carregada de leveza, amorosidade, caricia, amor ou violência. É assim que a palavra possui uma enigmática alquimia. É quase um mistério, para quem o escreve ou fala. Reinos já se pacificaram ou guerrearam por causa dela. O profeta Muammad advertia contra “esses homens que erram pelos vales e dizem o que não sentem”.  A esta habilidade do escrever, traduzi-los é o abismo da linguagem, e se pensarmos nos idiomas, só é possível compreendê-los como sentimento. A palavra antecede o ato da leitura, porque está na origem da evolução humana, da troca, da transformação. Possui um significado, um significante muito da subjetividade de cada pessoa. Cada palavra possui seu mistério, seja no discurso do sujeito, nas religiões, nas diversas culturas e idiomas. Essa cumplicidade que nos une pela palavra é porque compartilhamos os mesmos símbolos, significantes, das similitudes. É o que nos une. A barreira da palavra está no fundamentalismo das ideias e conceitos

A palavra é poesia, ao ser pronunciada, evoca uma sonoridade musical que desencadeia sentimentos, representações, significados, significantes profundos, muitas vezes indizíveis. Se a palavra fala, a voz é como uma música, é porque possui uma sonoridade, uma frequência energética em hertz, que desencadeia um turbilhão de emoções. A voz pode ser como um mantra a depender da forma e frequência em que as palavras são pronunciadas. E isso vem da energia, da catexia. Casa voz possui uma melodia, em várias tonalidades a inspirar os sentimentos mais nobres existentes ou não. Que as palavras e os idiomas possuem uma melodia, não há o que interrogar. Mas para além das palavras e de como essas são escritas ou pronunciadas, está a forma como é lido um texto. Embora a pronuncia ou a oralidade da fala, é que encanta, em sua energia iluminada envolve não só os sentidos e sensações, mas a energia de quem escuta, lê ou intui. As redes sociais de certa forma suprimiram, em grande parte, essa sonoridade, pela configuração. Mas a musicalidade da oralidade, através das palavras não se perde, o que faz as pessoas se conectarem com seus afins ou permitirem que sua energia vá se afinizando, com a energia, que em primeiro plano não se apresentava com grande afinidade. Então voz e a palavra é música. Música da alma, da essência do ser. A questão é a afinidade musical entre os seres, que interagem entre si. Não é por acaso que depois da visão a voz e a palavra é um recurso pessoal de aproximação entre os seres. O ar o vento está cheio de voz, palavras e pensamentos. E em um futuro longínquo será o pensamento. As pessoas estarão se conectando entre si pelo pensamento, com os pensamentos musicais afins. Então os pensamentos habitarão as entranhas da alma, alimentar-se-á dos sonhos e cada ser nascerá para si e para o outro. Seja esse outro um humano, a natureza ou o universo.

11 de outubro de 2017

Poesia - M. M. lach-me yê


Olhar teus olhos,
é ver meus olhos  em teus olhos...
Ouvir tua voz é,
sentir o tempo...
Olhar teus olhos,
é sentir a firmeza do céu estrelado,
o amor, e força de tua alma...
Sentir a força de teu toque em minh’alma,
é esperar o sopro suave de tua alma em minh’alma,
é sentir a leveza, força e proteção,
de um ser querido...
Olhar tua face,
é sentir teu sofrimento,
tua dor, teu amor...
Ouvir tua voz é sentir,
tua humildade, sabedoria e doçura...
Ouvir teu canto é sentir,
o canto da fidelidade e lealdade,
do ganso selvagem...
é sentir o sopro de uma imensa saudade...
Sentir tua respiração,
é sentir o calor de tua energia...
No teu olhar translucido,
não há dúvidas, do dever por amor...
Tua força está na fé e na lei...
Teu amor está na lealdade e esperança...
Teu arquétipo “esconde” uma sabedoria, inteligência,
uma doçura e amor incondicional.
Myriam’aya 

17 de setembro de 2017

“Construções em Análise”


"Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se defronta o arqueólogo é, notoriamente, a determinação da idade relativa de seus achados, e se um objeto faz seu aparecimento em determinado nível, frequentemente resta decidir se ele pertence a esse nível ou se foi carregado para o mesmo devido a alguma perturbação subsequente. É fácil imaginar as dúvidas correspondentes que surgem no caso das construções analíticas".

Literato por essência, Freud sempre gostou das metáforas, como recurso para a compreensão da arquitetura psíquica. Portanto ao pensar o trabalho do analista como um arqueólogo, faz com que esse se assemelhe, não só a busca do conhecimento, da descoberta, do entendimento, mas também da arte, pois sem uma escuta “fina”, estética, e porque não falar com um “senso” de arte, pois o inconsciente possui uma tessitura que só um gênio, fora da terra, poderia tê-la construído, não é possível aproximar-se dela. Mas percorrer os caminhos dessa tessitura não pertence ao tempo. Saber de que tempo vem esse ou aquele fragmento e a qual outro fragmento está vinculado, é tarefa de um não tempo.

FREUD, S. - CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE (1937) - Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII Rio de Janeiro, Imago-1996.

21 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica – A caminho da lei


https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2017/08/o-veu-da-direcao-clinica-sem-lei-so.html A questão que se coloca é: o que deseja o sujeito que busca a análise? Deseja contornar seus sintomas e encontrar melhores recursos para manter sua patologia e seus sintomas, deseja pequenas reformas e roupagens para manter o véu de sua existência, ou somente um socorro imediato de descarga, para continuar com sua patologia? Quem realmente deseja percorrer o caminho do autoconhecimento profundo do ego, de sua essência e existência? É um movimento difícil, que o moverá do lugar, pois muito são as resistências, que o impedem a uma determinação pelo autoconhecimento, pois ainda existe um gozo no sofrimento, mesmo que seja alimentado pela revolta, ressentimento, mágoa e ódio. Ou seja, há esgotado a capacidade de transformação, a plasticidade psíquica para uma resinificação. Mesmo quando a resistência possui alguma plasticidade, encontra-se, ante o desvelar de “novos caminhos para um impulso instintual”, alguma “inércia psíquica”, uma interrogação do inconsciente, consequência de suas associações, de algo profundo, não vivenciado, ou esquecido, se é compensador o gasto e investimento de energia para novos caminhos, tidos como desconhecidos. Essas forças instintuais profundas se aferram contra a cura, o restabelecimento do equilíbrio psíquico, até serem esgotadas as energias que as alimentam. Dentre essas energias estão os afetos já mencionados acima, aos quais incluímos o sentimento de culpa, autopunição, o masoquismo, que nos remete ao “principio do prazer”. Ou seja, se o sofrimento é o que causa prazer, é porque o sujeito se automutila. “Não há (luz) esperança no final do túnel”, pois morrer ou viver na escuridão “é a alternativa que ficou, pois perdeu todos os objetos de amor”, naquilo que é sua compreensão. Há que tocar com a luz suave, a primeira fissura que houver na desesperança e assim construir o doloroso caminho para a lei.

Durante toda a vida e durante a análise o sujeito estará sempre se debatendo e desprendendo um gasto de energia entre o instinto de morte e o instinto de vida. O exemplo mais contundente sobre as forças ocultas da alma está na frase de Freud: “No momento, temos de nos curvar à superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços redundar em nada. Mesmo exercer uma influência psíquica sobre o simples masoquismo constitui um ônus muito severo para nossos poderes” (1937). São conflitos a curto e médio prazo irreconciliáveis, que geram agressividade, que uma vez internalizada, demanda retorno e pacificação. Então há que realizar uma incursão epistemológica, pois para uma concepção materialista a análise pode ter um fim. Então, que a análise possa ter um “fim” é aceitável em uma concepção materialista. Mas é um imperativo categórico que o autoconhecimento pertença à eternidade da alma. Até onde é possível aprofundar a análise diz respeito à evolução psíquica de cada sujeito. Uma questão é assertiva: é muito difícil o sujeito entrar em análise e possuir o firme desejo de vasculhar os “porões” de seu inconsciente de forma indeterminada. O que se vê, na esmagadora maioria, é um discurso refratário, inconsistente no que diz respeito ao autoconhecimento e ao percurso do próprio inconsciente, ao seu lado obscuro.

No mundo material deseja-se os objetos do mundo material e o inconsciente não é um objeto material. Mesmo quando se fala de autoconhecimento através de uma escolha espiritual, é possível interrogar: como é possível conhecer o mundo imaterial, se nem a se próprio o sujeito possui a pretensão de conhecer. De intuir o porquê de sua existência, suas causas e consequências, porque é difícil se implicar, assumir as responsabilidades pelo desejo de viver aquilo que o danifica, que subverte a lei. Não é nosso objetivo aqui discorrer sobre a saúde mental do analista, mas é possível inferir, que todos têm suas constituições, tragédias pessoais, que se supõe razoavelmente “resolvidas”, no sentido de interferir o mínimo na relação de transferência, no diagnóstico diferencial e na direção clínica. “É, portanto, razoável esperar de um analista, como parte de suas qualificações, um grau considerável de normalidade e correção mental” (Freud, 1937). Então primeiro o analista precisa ser verdadeiro para consigo próprio, no que diz respeito às suas fraquezas, para então ser verdadeiro na condução analítica, ou seja, para que sua prática não seja enganosa e antiética. Em todas as profissões existem profissionais, cujo único objetivo do fazer profissional é o próprio ego e seus desejos pessoais, com o analista não é diferente. Há que separar o joio do trigo. O somatório formação acadêmica, desenvolvimento intelectual, análise pessoal, experiência profissional, espírito cientifico, desenvolvimento moral e espiritual, pois ele precisa se religar com o planeta e o universo sem misticismo são imperativos categóricos.

É nesse sentido que Freud é muito feliz quando interroga: “Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios às implicações e as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência crítica e corretiva da análise. “Tal acontecimento poderia justificar as palavras do escritor que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal” (Freud, 1937). Então tarefa interminável, em primeira instancia, é a análise do analista. A análise é um caminho de autoconhecimento das profundezas do inconsciente, porque a parcela do inconsciente que se torna consciente é o aprendizado que se conquista na existência e os conteúdos inconscientes advindos de memórias ancestrais revelados, e os conflitos dos desejos que estão “fora da lei”, que demandam cura. Possibilitar um começo de reintegração do ego, uma incorporação do ego uno, a caminho da evolução da psique, da alma é tarefa individual, mas do sujeito inserido na lei universal em que vive e não há lembrança que facilite o aprendizado, pois para lembrar é necessário crucificar os sofrimentos, e isso é tarefa da eternidade. 

Embora seja importante considerar a disposição hereditária, essa não pode ser uma regra infalível, pois apesar de em sua grande maioria, os similares estão em uma mesma cadeia evolutiva, há exceções que podem se destacar e as pesquisas na biologia assim o revelam. Não seria diferente na vida da psique, da alma. Não é possível anular o que pertence ao passado, pois sem conhecer o passado, não se compreende o presente e não se projeta o futuro. Compreender o passado é compreender as frustrações, os medos, a pobreza, a falta de amor, os infortúnios, as dissensões familiares, a solidão, as escolhas que trouxeram sofrimento no trabalho, no casamento, nas relações, as tragédias familiares, a promiscuidade, sentimentos como arrogância, inveja, vaidade, culpas, remorso, o preconceito, as perdas, a própria escravidão. A análise é arena, onde esses monstros irão se defrontar. Ante a complexidade das mazelas humanas, há que acolher acalentar, para caminhar um passo de cada vez. Assim “tornar consciente o que é inconsciente, remover as repressões, preencher lacunas da memória” é o começo para uma direção, em um caminho de equilíbrio. Isso não significa interrogar o que seria, se determinada constituição, circunstancias e desvios no curso do desenvolvimento não se efetivassem, pois tudo é aprendizado, evolução de consciência. E a consciência evolui, quando aumenta o conhecimento dos conteúdos inconscientes, possibilitando o caminho de reconciliação com a lei.

O processo analítico pode aproximar-se da raiz dos fenômenos, quando rastreia a repetição dos mesmos. Tarefa árdua, dolorosa, pois mesmo identificado essas raízes, nem sempre é possível levá-las a interpretação, se não houver demanda. Não que a demanda “resolva”, mas pode ser um inicio possível, mas nem sempre de execução, pelos danos que a resistência do ego (é uma anticatexia) impõe a repressão desses conteúdos mesmo nas estruturas neuróticas. Em estruturas mais complexas como as psicoses e perversões os conteúdos inconscientes são inacessíveis em função do afastamento ou negação da realidade, é como se o inconsciente invadisse o consciente, cujo discurso indica uma consciência “apagada”, “inexistente”, a ser reconstruída. O progresso inicial mostrar-se-á com o tempo, enganoso, se algo do real for explícito e o sentimento de remorso, não for possível de ser sustentado pelo ego. Então possivelmente poderemos ter o início de uma relação de transferência negativa do analisando para com o analista. Mas esse sentimento é a transferência de sentimento abrigada no inconsciente do paciente. O analista por determinado tempo é o substitutos de objetos diversos, a serem resinificados. “Uma transferência está presente no paciente desde o começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu progresso” (Freud, Conferência XXVII). A transferência hostil em relação ao analista é mais permeável a determinadas estruturas psíquicas fora do campo das neuroses, nas que pode revelar-se nesse, no percurso da analise, como traços que os atravessam, constituindo uma ambivalência emocional.

A complexidade em falar de análise terminável e interminável está na imensa arquitetura de sentimentos que envolvem o percurso analítico, no que diz respeito ao próprio sujeito e seus sentimentos hostis, que representam um vinculo afetivo patológico com sua história e na relação transferencial com o analista. Nem sempre é possível identificar a origem dos sentimentos do sujeito, por mais intensa, que seja a livre associação, a interpretação e o recuo no tempo. Algo fica de incógnita sobre acontecimentos, fenômenos, traumas, conflitos que são em determinado momento inapreensíveis, mas que retornam como repetição. As faces patológicas do sujeito podem estar lodosamente “estacionadas”, e por assim estarem, seus referenciais de saúde mental comprometidos, mas esses estados lodosos, vez por outra movimentam, vibram-se, o que significa que é possível, que uma réstia de luz se adentre, permitindo um pequeno movimento. Assim nesse percurso “a transferência pode ser comparada à camada do câmbio de uma árvore, entre a madeira e a casca, a partir do qual deriva a nova formação de tecidos e o aumento da circunferência do tronco” (Freud,). Se a troca de casca da árvore produz diversos produtos a vida e realimenta o ciclo da natureza, ao tempo que renova a árvore, mantendo inexorável  as leis da natureza, o movimento lembrança-esquecimento possui, apesar de ser, uma dialética de defesa é antes de tudo uma provação a ser vencida. A compreensão interna do sujeito em análise, seus insights, seu raciocínio sobre si mesmo e sua determinação de “cura”, não só dos traumas, mas de suas questões egoicas, narcísicas, são movimentos importantes, que geram uma energia que permite ascendências sobre si mesmo. A análise termina em um não tempo, quando os ciclos terminam e novos começam. Então estamos submetidos à lei do cosmo de mudança, evolução contínua. A estabilidade está submetida a lei do movimento, onde é imperativo que todos os seres no universo, de não só transformarem-se, mas transmutarem-se. Essa é a lei da frequência de energia do amor.
  
Referências
FREUD, S. - ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937)  - Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVII - TRANSFERÊNCIA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVIII - TERAPIA ANALÍTICA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXI – A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA (1933[1932]) - Obras Completas de Psicanálise - volume XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXIV - EXPLICAÇÕES, APLICAÇÕES E ORIENTAÇÕES (1933[1932])  - Obras Completas de Psicanálise - volume  XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.

14 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica - Sem a lei só existe o caos.


“Sabemos que o primeiro passo no sentido de chegar ao domínio intelectual de nosso meio ambiente é descobrir generalizações, regras e leis que tragam ordem ao caos”.

https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2017/08/o-veu-da-direcao-clinica-como-viver-o.html Por maior comprometimento que o sujeito tenha com sua análise, no sentido de “vasculhar” seu inconsciente, sempre haverá resíduos, mais profundos, que ele não consegue acessar em determinado momento, seja pela falta de amadurecimento do ego, seja pela falta de conexões mnêmicas ou porque está fora do tempo. Cada fase do percurso de desenvolvimento do sujeito é uma provação a vencer. Daquilo que é constitucional, muitos são os resíduos que permanecem nas fases seguintes na história do sujeito, de sua ancestralidade e da humanidade. Por isso “o que um dia veio à vida, aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos” (Freud, 1937). É possível afirmar que, não, na atual existência no planeta. Portanto muito de conteúdos mnêmicos, ficarão intocados a espera de arqueólogos de consciências distendidas, que viabilizem ir mais profundo nas escavações. Assim, o que freia a análise? A resistência, que advém da força dos instintos. Se o ego está aferrado aos instintos, no percurso da análise, esse ego irá amadurecer, na perspectiva do equilíbrio com seus instintos, mas é possível que a força dos instintos, demande um tempo do inconsciente para ser mantido sob controle do ego, e assim reelaborado, para que o ego não se desespere, diante da força dos instintos. O conflito, expressa-se pelo sintoma. É possível que determinado sintoma não possa ser tratado de forma profunda em determinado momento, seria como arrancar algo que está incrustado no sujeito e que necessita ser drenado de forma lenta. “A advertência de que deixemos repousar os cães a dormir, que com tanta frequência ouvimos em relação a nossos esforços por explorar o submundo psíquico, é peculiarmente despropositada quando aplicada às condições da vida mental, pois, se os instintos estão provocando distúrbios, isso é prova de que os cães não estão dormindo, e, se eles realmente parecem estar adormecidos, não está em nosso poder despertá-los” (Freud, 1937). Eles irão despertar quando um movimento de energia, possibilitar o descolamento daqueles sentimentos que estão incrustados, consumindo a energia do sujeito, sem que esse se dê conta. Desta forma a direção clínica implica, em sinalizar a possibilidade de sua existência, o que implica primeiro em está advertido, do quanto de angústia o sujeito suporta nessa relação transferencial.

A condução clínica situa-se nos sofrimentos imediatos do sujeito, mas há que está advertido das implicações destes com conflitos instintuais inconscientes. Deixar ao destino, sem adverti-lo é incorrer em um erro ético, pois há que esperar o tempo para vê-los se desvelar. Nos momentos de crise a análise acolhe, escuta e possibilita um fortalecimento do ego, para que as supostas causas dos sintomas possam ir sendo reveladas. Adentrar o inconsciente requer a intuição de um tempo não cronológico. Portanto cabe apenas familiarizar o sujeito com possíveis conflitos adormecidos, esquecidos, sem prejudicar a relação transferencial, embora esta familiaridade irá atentar-se apenas, aqueles que tenham um dispêndio menor de angústia.  Em primeira instancia a análise se dá no plano da matéria, em sua abordagem com o ego, mas avança, quando acerca-se dos conteúdos inconscientes, revelando-os a luz do entendimento de sua essência, suas causas e consequências ou sintomas. É aqui que o sujeito vislumbra suas transgressões instintuais à lei. Mas há que se ater em um primeiro momento a uma cooperação com o ego. Se nas estruturas neuróticas essas questões já se revelam penosas para o sujeito, nas estruturas psicóticas e perversas essa cooperação é quase inexistente, pois ela é manipulada pelo próprio ego, há uma sinergia, uma cumplicidade do sujeito com sua obscuridade. O ego manipula a si próprio, fechando as vias de acesso transferencial. Então somente através de penoso sofrimento em um tempo que não é cronológico, em um tempo que nos é inacessível, essas estruturas vislumbrarão um clarão, para a demanda de uma abordagem, porque para além da dor que abriga a estrutura, há a dor de rever a estrutura. Então é uma dor que se sobrepõe. E dor que se sobrepõe não pertence a nosso tempo cronológico. Para tratar no campo da ciência há que existir um “corte epistemológico”.

Sempre abordamos as estruturas clínicas, visualizando-as não de forma pura, o que seria ingenuidade na direção clínica. O sujeito é constituído de um traçado psíquico, que abordamos, quando em outros artigos falamos acerca de “arquitetura psíquica”. “Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psicótico num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu afastamento de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra nos fornecerá uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de ‘alteração do ego’” (Freud, 1937). É exatamente a extensão em termos de quantidade e qualidade da energia envolvida (absorvida e liberada), que se iniciará o processo de uma saúde psíquica. A questão é quanta força dos instintos o ego suporta em busca de seu equilíbrio. O que e quanto de renúncia está “disposto” a elaborar, viver. Porque aquilo que é adquirido, é por assim dizer, fácil. Mas o que é constitucional é complexo. Mas é possível supor que o constitucional em sua ancestralidade já foi circunstancial e adquirido. Se no que é adquirido o ego tem que lutar como mediador, entre o inconsciente e os perigos do mundo externo, como se conduzirá ante os perigos abrigados no inconsciente? Poderá tratá-los como perigos externos. Então temos uma guerra interna, em uma terra que precisa haver lei, e o superego terá que viabilizar isso. E se os conflitos forem de ordem constitucional, que recursos estarão a disposição do ego, nessa luta entre as exigências do mundo externo e as exigências instintuais no inconsciente, que são tomada como exigências externas, ou seja, uma guerra de grandes proporções, que a análise não dá conta. É o choque de uma demanda externa, que é subjetivada pelo sujeito e uma demanda instintual, inconsciente, que é tida como externa. Esse choque de energias causa o desequilíbrio psíquico, que delineia as estruturas psíquicas.

Então delineia-se três saídas para o ego: negar o real, e assim ignora  a lei; dominar o perigo interno antes que se torne externo, o que vai demandar uma “eficiência” do superego, ou reprimir as demandas internas. Mas não devemos esquecer que o recalcado sempre retorna, como mecanismos de defesa, pois não há saída para repressão pura e simplesmente dos instintos. Essa manipulação do ego sobre seus conteúdos inconscientes pode levá-lo a negar esses conteúdos, mascará-los, substituí-los, agregando a esses outros conflitos de forma que se mesclem e torne mais difícil separá-los. Podendo torná-los em determinado momento inteligíveis, mas o retorno seja do que for como reprimido é inexorável. Mas por um momento a inexorável verdade é sacrificada em função do princípio do prazer. Por mais que o ego afaste suas verdades “não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio contra perigos internos”. É dessa forma, através dos mecanismos de defesa que o ego fornece uma imagem falseada do próprio sujeito, tornando-o cego a si próprio. Muitas vezes o “preço a ser pago” em uma existência pela “escolha” de determinados mecanismos de defesa pela essência do sujeito é alto e poderá lhe custar o fracasso de sua jornada. O dispêndio de energia psíquica é grande e inócua porque esses mecanismos de defesa aferram-se ao seu ego e “retirá-los” é como desgrudar uma sanguessuga. A marca ficará por longo tempo. Como no universo o que não nos falta é tempo, cada sujeito pelo seu fazer diário delineará o tempo de autonomia da consciência de si. Mas o custo desse tempo, isso sim, é penoso.

A jornada só pode ser transformada depois de muitas repetições. Assim as primeiras experiências da infância, desde a gestação, que foram fonte de conflitos, sofrimentos, repetem-se indefinidamente somados a outros conflitos, sofrimentos, numa sucessão que demanda cura, e só se esgota, quando a última cicatriz for desfeita. É por isso que o ego está sempre se autoenergizando para repetir e superar, curar. Por isso vemos sujeitos adultos, supostamente maduros, com repetições que remetem a infância a instintos primitivos que enfraquecem o ego, dificultando a caminhada, pois para transcender ao ego é necessário fortalecê-lo, ou seja, que a essência readquira sua força original. O trabalho de análise visa não só fortalecer o ego, no que ele explicita do inconsciente, mas fortalecê-lo para que ele enfrente primeiro sua obscuridade, o que “está escondido no id”. O “trabalho terapêutico oscila como um pêndulo, entre um fragmento de análise do id e um fragmento de análise do ego”. Ao tempo que intervimos nos conteúdos do id, no outro, a demanda do ego imprime outro ritmo. “O efeito terapêutico depende de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da palavra) no id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante interpretações e construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não para o paciente, enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não abandona suas resistências” (Freud, 1937). Poder-se-ia dizer que a arquitetura psíquica é tão perfeita, que por maiores esforços e competência do analista, a resistência não cederá espaço a determinados conteúdos inconscientes, se não houver recursos psíquicos constitucionais do sujeito para tal. Portanto há limites para o poder curativo da análise. O que o sujeito pode enfrentar consigo próprio são batalhas, grandes e pequenas, nunca uma guerra com seus instintos primitivos, pois não há tempo cronológico para construção desses recursos e a análise não é o único batalhão a se recorrer. Mas há que se construir vários batalhões, muitos dos quais a civilização moderna perdeu. Pra as batalhas internas é preciso energia, para “dar conta” dos sintomas, superá-los e se reconstruir e ao mesmo tempo drenar os instintos e energias primitivas.

Ao nascer o sujeito já traz em sua psique uma bagagem ancestral, hereditária, que para além das comprovações cientificas, pulsa em sua alma, insight, que ele não consegue explicar. E para isso só há um caminho: o autoconhecimento, o desenvolvimento do intelecto e do espírito que anima a matéria, o “animus”. “O que foi adquirido por nossos antepassados decerto forma parte importante do que herdamos. Quando falamos numa ‘herança arcaica’ geralmente estamos pensando apenas no id e parecemos presumir que, no começo da vida do indivíduo, ainda não existe ego algum. Mas não desprezaremos o ato de que id e ego são originalmente um só; tampouco implica qualquer supervalorização mística da hereditariedade acharmos crível que, mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já estão estabelecidas para ele. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e nações, inclusive em sua atitude para com a análise, não permitem outra explicação. Em verdade, mais do que isso: a experiência analítica nos impôs a convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo, não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária” (Freud, 1937). Na civilização predatória, da velocidade, dos produtos de prateleira, o sujeito é o sujeito do sistema, condicionado e pressionado a resultados rápidos, mas aqui estamos falando do atemporal; é nessa demanda que todo tratamento é longo, pois não é possível suprimir etapas. A árvore se torna árvore, pela semente, e a depender da espécie é centenas de anos cronológicos e isso demanda muita energia, seja de acumulo, de drenagem. Assim a reorganização psíquica diz respeito a lei da consciência, subjetiva, da lei da natureza, universal.

7 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica - Como viver o presente, pensar o futuro, sem conhecer e curar o passado?


Esse artigo se estendeu, e não poderia ser diferente, pois falar do término da análise é também falar da continuidade, é interrogar qual término e qual continuidade. Por uma questão didática abordamos em três tópicos que serão publicados de forma sequencial: 1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”; 2. Sem a lei só existe o caos; 3. A caminho da Lei. 

1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”

 Ao pensar em uma análise terminável e em uma análise interminável, temos que pensar em que tempo estamos e de qual tempo estamos a falar, porque o percurso da análise, do autoconhecimento é algo que diz respeito a um tempo ou a um não tempo. O tempo é o grande limite que se interpõe. A força constitucional dos instintos existe dentro e fora do tempo. Como o inconsciente é atemporal, o que nos defrontamos no tempo, são com as fraquezas do ego. “Terminar a análise” diz respeito a elaborar o instinto de morte, o grande conflito do psiquismo humano, pois ele é o senhor que bloqueia as passagens, para o profundo conhecimento do inconsciente, o que não é ainda possível nessa evolução da humanidade. Há que ressaltarmos que a divisão consciente - inconsciente é meramente didática, pois o que é consciente é o que é revelado. Por instinto de morte compreendemos a força desagregadora e ao mesmo tempo de escape do sujeito. Os sofrimentos psíquicos possuem inúmeras causas, que podem estar, nas categorias de “origem traumática” e “origem constitucional”, embora estas em geral se intercruzem. A questão é em que medida estas irão fazer alterações no ego, como parte do processo de defesa ou como um suposto prazer negativo; em que quantidade de energia e em que qualidade, que comprometa o caráter do sujeito.

Por certo que a análise é um começo primário do autoconhecimento. Portanto há que racionalizar as expectativas, pois começar a falar no sentido de um profundo conhecimento de si mesmo é como andar a beira mar, nas pequenas marolas do mar. Mas o mar profundo está adiante e é preciso aprender a nadar. Muitas vezes um conflito que “foi tratado” retorna  com outra roupagem, em conflitos aparentemente diferentes. Isso nos revela o quão profundo é a essência do nosso eu e das marcas mnêmicas. A relação de transferência com o analista que possibilita uma direção clinica que cada sujeito irá aprender no percurso da análise, deverá possibilitar um estancamento provisório, daqueles conteúdos que possibilitam maior sofrimento. Dificilmente o sujeito que “termina” sua análise estancou a essência de seus conflitos, e tomou posse de seu eu. Não estamos falando de posse do inconsciente. No máximo, ele terá, com muito esforço, fleches de conteúdo inconsciente e os ligará aos sintomas de seus sofrimentos. Podemos interrogar por que alguém que se propõe a um trabalho analítico, mesmo que não seja no sentido de fazer uma pequena “viagem” tangencial em seu inconsciente, levanta resistências tão fortes? Por que ele está aferrado aos seus sintomas, a um padrão de repetição em sua forma de agir, que somente o profundo sofrimento, o remédio amargo, para deslocá-lo desse “lugar de conforto”.  Teoricamente “é mais fácil lidar com o que já se conhece” do que com o desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja ele mesmo. “Vencer” as primeiras resistências revelará até onde o sujeito está disposto a ir à elaboração de seus conflitos.

Para vencer as resistências que vão se interpondo é necessário “fortalecer o ego ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego.” (Freud, 1937 ). Fazer o link de um conflito atual com um conflito do qual o próprio sujeito não se lembra, “não tem a menor ideia que ele existe”, só o sabe intuitivamente, é tarefa árdua. Como a energia que move o sujeito está desconectada em si e para si, ele não consegue fazer as conexões de sua própria existência presente, que dirá do percurso de sua alma. Estabelecida a transferência surge os indícios de relaxamento do conflito atual, mas isso ainda não lança luz sobre seus conflitos passados e suas conexões. A expectativa é que o fortalecimento do ego possibilite ao sujeito lidar com as forças dos instintos, de forma mais elaborada, inseridas na lei simbólica. Então a “queda de braço” entre o fortalecimento do ego e a força dos instintos seria a equação que poderia possibilitar o equilíbrio para aprofundamento ao inconsciente. Mas, infelizmente não é tão simples assim, se é que isso é simples. As forças instintuais que até então mantiveram-se veladas no inconsciente, respaldadas pela resistência, irão revelar-se, de alguma forma, mesmo depois de “encerrada a análise. Lidamos com uma sequencia de tempo, que é o tempo real, cronológico e uma instancia atemporal que é o inconsciente. O inconsciente está fora do tempo, como o concebemos, portanto como falar de análise terminável? Se lembrarmos o tempo cronológico que o sujeito permanece em análise, então diremos que quase nada foi feito.

Mas é preciso lembrar que a análise ou até a o desenvolvimento da capacidade de autoanálise, significa a libertação do sujeito de seus sofrimentos, sintomas, anormalidades, de todos os desejos que estão fora do equilíbrio das forças internas, a margem da lei. Se a provação do nascimento já é por si só enigmática e, portanto esquecida, a possibilidade de manter os sofrimentos ao longo da vida conflui com a demanda da procura da análise, para, inconscientemente, vislumbrar melhores recursos para lidar com seus sintomas e assim não dar um passo à frente, que possibilite a superação dos conflitos internos. Se os sintomas passam a apresentar outra roupagem, o objeto de conflito é transferido “indefinidamente”, como escapes inevitáveis de serem feitos, porque demanda cura. Como é possível falar em fim de análise? O que colocaria a possibilidade de um final seria o resgate das lembranças  fundamentais da trajetória da psique. Mas produzir lembranças não é uma questão fácil. Então ao longo da vida muitas serão as doenças, (sintomas), que o sujeito será acometido em função do ego, por mais fortalecido que estiver não ser capaz de dar suporte a determinadas lembranças. O tempo da análise é complexo. Em geral quando o sujeito se vê diante da possibilidade de uma lembrança importante, uma associação, conexão, vir ao consciente, ele manifesta o desejo de deixar a análise.

Muitas são as questões técnicas que se colocam ao analista, além do profundo percurso de sua própria análise em contraposição a formação teórica nas referências originais e não nos interpretes. Há que considerarmos que apenas a formação psicanalítica universitária é insipiente. Então, a saber, o problema técnico pressupõe uma jornada profissional e pessoal árdua e uma análise pessoal do profissional profunda. Usando de tautologia, o tempo só o tempo vai falar. “Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica. Isso acontece quando duas condições foram aproximadamente preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço. Se se é impedido, por dificuldades externas, de alcançar esse objetivo, é melhor falar de análise incompleta, de preferência a análise inacabada” (Freud, 1937). Mesmo para os sucessos parciais ao longo da análise, muitas vitórias ficarão sem compreensão. Se a causa do sofrimento é constitucional e circunstancial, seus sintomas são mais complexos, e haverá maiores dificuldades ao acesso aos conteúdos inconscientes. Os instintos são, então, fortes, difíceis de ceder a incursões pelo ego, fixando e tornando-se crônicos. Quando, apesar das situações traumáticas, o destino do sujeito não está submetido a duras provações, seu equilibro segue com seu ego estruturado. Mas se essas provações geram uma luta defensiva, que se estrutura com fissuras no ego, então o “termino” de uma análise tem um prognóstico mais distante, de longo tempo, pois as alterações no ego é um dos obstáculos no caminho da cura, naquilo que se define, em um tempo cronológico de vida.

Embora o analista possa com sua experiência, visualizar a estrutura psíquica em questão e levantar as hipóteses dos sintomas, das defesas e estrutura psíquica, estas só poderão ser reveladas pelo sujeito, se este evoluir em seu autoconhecimento de forma a ter insight sobre conteúdos e suas conexões. Portanto se o sujeito não aprofundar seu processo de autoconhecimento, por mais que o analista vislumbre a estrutura e suas conexões, estas muitas vezes ficarão sem uma incursão a interpretação e reelaboração, pois ainda não há demanda para tal. O percurso de uma análise não é linear. Aquilo que se mostra acessível em determinado momento, pode, com o pouco de avanço conseguido, se recrudescer. “Concluído” uma demanda e dado como finalizado um processo analítico, nada inviabiliza que a mesma demanda retorne com outra característica e outros sintomas, então a história anterior e posterior ao reequilíbrio terá que ser retomada. A análise “protege” o sujeito de novos e grandes conflitos circunstanciais, porque esta, o coloca no invólucro da lei simbólica, possibilitando não só o fortalecimento do ego, como as incursões interpretativas. Não consideramos aconselhável despertar um conflito adormecido, se não há demanda do sujeito para tal. Portanto tentar exaurir as possibilidades de uma patologia ou sua cronificação no sentido de impedir uma alteração mais profunda na personalidade é inócuo, pois se não há demanda, muito pouco, ou quase nada pode ser realizado. Se a influência das situações traumáticas não forem tratadas de imediato, enquanto estão vivas na consciência, sem grandes ligações no inconsciente, e a força constitucional do instintos estiverem mais submetidas a lei e as alterações no ego não forem profundas, então teremos a possibilidade de que algo ou grande parte do vivido será superado, curado. Se não o prognóstico de cura coloca-se para um longo tempo ou um não tempo.

Para que a força dos instintos seja circunstancial, deve ser também constitucional, ou então o sujeito já a teria reelaborado. A questão que se coloca é: “É possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?” Não. É possível, com muito esforço “esvaziar” o instinto de sua energia e assim “domá-lo”. Assim será construída uma melhor harmonização com o ego, ou seja, através de um reequilíbrio de energia, o que não implica em um novo desequilíbrio, se a vigilância instintual, não for constante, até sua sublimação. Isso requer o tempo do inconsciente. Por maior que seja a des-energização de um instinto, ele diante das provações da vida pode retornar de forma patológica, se essa des-energização não estiver pautada em um percurso de sublimação. Ele continuará reprimido, demandando a liberação, principalmente se forem reforçados no percurso da vida, por novos sofrimentos. É muito difícil alguma alteração no ego, se os conteúdos inconscientes não foram garimpados, de forma determinada no processo analítico, pois a análise é um caminho de aprendizado para o autoconhecimento. Mas as forças dos instintos são poderosas, portanto há que capacitar o ego a vencê-las, reelaborando-as. Um ego maduro é um ego que caminha para superar seu egocentrismo, e espiritualizar-se no sentido do próprio amor e do amor ao outro.

21 de junho de 2017

Almas Similares:a-ma-ti-na-ta


Tu que lês meus pensamentos,
penetras em minh'alma,
conheces meus desejos, sonhos,
sabes da trajetória da minh'alma,
me amas incondicionalmente,
sabes tudo sobre mim,
me ver sem estares presente,
falas comigo pelo pensamento,
sabes sempre onde estou,
sabes sempre como estou,
lês minh'alma em meus olhos, em minh'alma,
minh'alma vibra ao ouvir teu nome,
falar teu nome enche minh'alma de amor,
sentes a vibração de minh'alma,
iluminado, sinto tua vibração,
tens a ingenuidade dos puros de coração
tua presença forte é um doce afago,
em minha trajetória,
teu toque em minh'alma
me transporta num não tempo,
vejo o invisível,
flutuo, unida a tua presença, em uma dança.
Quando penso em ti o mundo desaparece,
sensível, humilde, sábio,
com um sopro, cura minhas dores,
eis meu defensor e cavaleiro,
fiel, leal, devotado,
alma similar,
cavaleiro de Nosso Senhor,
um amor devotado a humanidade!

Myriam Maya

20 de junho de 2017

“Devemos nos tornar senhores dos sintomas e solucioná-los”...


“Só consideramos que uma análise esteja no seu término quando todas as obscuridades do caso tenham sido elucidadas, as lacunas da memória preenchidas, e descobertas as causas precipitantes das repressões. Os êxitos que assomam de imediato, consideramo-los mais obstáculos do que auxílio ao trabalho da análise; e pomos um fim a esses êxitos, resolvendo constantemente a transferência, na qual eles se baseiam. É essa última característica que constitui a diferença fundamental entre terapia analítica e terapia meramente sugestiva, e que livra os resultados da análise da suspeita de serem sucessos devido à sugestão. Em qualquer outro tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente preservada e mantida intocada; na análise, a própria transferencial é sujeita a tratamento, e é dissecada em todas as formas sob as quais aparece. Ao final de um tratamento analítico, a transferência deve estar, ela mesma, totalmente resolvida; e se o sucesso então é obtido ou continua, ele não repousa na sugestão, mas sim no fato de, mediante a sugestão, haver-se conseguido superar as resistências internas e de haver-se efetuado uma modificação interna no paciente.”
“A aceitação de sugestões, em determinados pontos, é, sem dúvida, desestimulada pelo fato de que, durante o tratamento, estamos lutando incessantemente contra resistências capazes de transformar-se em transferências negativas (hostis). E não devemos deixar de assinalar que grande número de descobertas na análise, que de outro modo poderiam ser suspeitas de serem produtos da sugestão, confirmam-se, uma a uma, a partir de outra fonte irrepreensível. Nossos fiadores nesse caso são aqueles que sofrem de demência precoce e paranoia, os quais, naturalmente, estão acima de qualquer suspeita de serem influenciados pela sugestão. As traduções de símbolos e de fantasias, que esses pacientes nos apresentam, e que neles irromperam na consciência, coincidem fielmente com os resultados de nossas investigações acerca do inconsciente dos que apresentam neurose de transferência; e, assim, confirmam a correção objetiva de nossas interpretações, sobre a qual tantas vezes se lançam dúvidas. Penso que os senhores não se desorientarão se, nesses pontos, confiarem na análise.”
“Passo a completar minha descrição do mecanismo de cura, revestindo-o com as fórmulas da teoria da libido. Um neurótico é incapaz de aproveitar a vida e de ser eficiente — incapaz de aproveitar a vida porque sua libido não se dirige a nenhum objeto real, e incapaz de ser eficiente porque é obrigado a empregar grande quantidade de sua valiosa energia, a fim de manter sua libido sob repressão e a fim de repelir seus assaltos. Ele se tornaria sadio se o conflito entre seu ego e sua libido chegasse ao fim, e se o ego mesmo tivesse novamente sua libido à sua disposição. A tarefa terapêutica consiste, pois, em liberar a libido de suas ligações atuais, subtraídas ao ego, e em torná-la novamente utilizável para o ego. Onde então se situa a libido do neurótico? É fácil encontrá-la: está ligada aos sintomas, o que a ela proporciona a única satisfação substitutiva possível, na época. Portanto, devemos nos tornar senhores dos sintomas e solucioná-los — o que é exatamente a mesma coisa que o paciente exige de nós. A fim de solucionar os sintomas, devemos remontar às suas origens, devemos reconstituir o conflito do qual eles surgiram e, com o auxílio das forças motrizes que, no passado, não estavam à disposição do paciente, devemos conduzir o conflito rumo a um resultado diferente.”

Porque é importante, muitas vezes, falar de trechos longos dos escritos freudianos? Primeiro porque é como pinçar um fragmento revelador, segundo para adentrar nas entrelinhas do dito, mas não escrito. É pretensioso afirmar que uma análise “nunca” termina. E o “nunca” aqui fala de um não tempo. Se pensarmos no imenso arquivo que é o inconsciente, cheio de lembranças proibidas, cheias de culpas, remorsos, dores, amores e ódios, de repressões; é como um quebra-cabeça, que aparentemente não se encaixa. Mas, uma análise mais profunda, vai ligando os “fios”, as “peças”, e vai-se verificando, pelos conteúdos que vão surgindo à consciência, que tudo está conectado, e possui um sentido, único e particular, que diz respeito ao percurso do sujeito e a sua essência. Colocar luz nessa “caverna” escura e obscura é elucidar, “amarrar” os pontos, é dar um sentido as conexões de energias, pelos seus significantes. É separar o joio do trigo. É fazer florescer o trigo e eliminar o joio. Por isso a questão da transferência é importante, porque estão implicados analista e analisando. São dois inconscientes que se interconectam. Mas supõe-se que o analista deve, minimamente, ter o controle da transferência, para não invalidar o processo analítico. É preciso um saber de lugar e direção. As terapias de sugestão devem ser vistas com reservas, porque interfere no livre arbítrio do outro. E é claro que o sujeito, se possível, não se implicaria nem com seu livre arbítrio, para não responsabilizar-se para consigo próprio e suas escolhas. Na análise, a transferência não é mantida intocada, pois há que, os sujeitos se implicarem, para que ao “final” do tratamento, esteja resolvida, e a cura seja efetiva, pelo término dos conflitos, sofrimentos internos e seus sintomas. Como viver o presente, pensar o futuro, sem conhecer e curar o passado?
Referência
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVIII - TERAPIA ANALÍTICA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

19 de junho de 2017

Vida e Morte é um ciclo - Freud e Empédocles de Acragas

  
"Afinal de contas, presumimos que, no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia. Estou prontíssimo a ceder o prestígio da originalidade em favor de tal confirmação, em especial porque nunca pode ficar certo, em vista da ampla extensão de minhas leituras nos primeiros anos, se aquilo que tomei por uma nova criação não constituía um efeito da criptoamnésia."
"Empédocles de Acragas (Girgenti), nascido por volta de 495 a.c., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa. Capelle compara-o ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias devem inevitavelmente impressionava coisas pela mistura dos quatros elementos, a terra, o ar, o fogo e a água. Sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do conhecimento ideias modernas, como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso  nessa evolução."
"Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância."
"O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de amor e discórdia. Desses dois princípios — que ele concebeu como sendo, no fundo, “forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente” —, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz, derrota seu parceiro."
"Os dois princípios fundamentais de Empédocles são, tanto em nome (amor e discórdia) quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe, não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão dos componentes instintuais. (o materialismo) Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o núcleo de verdade contida na teoria de Empédocles se apresentará à compreensão posterior."

A despeito das incursões materialistas, próprio da época em que escreveu, porque remontou Freud pela gênese da filosofia grega, pela via de Empédocles de Acragas para falar não só da alma, mas o que é surpreendente da sobrevivência desta?

Para Empédocles não existe nascimento e morte. O nascer e o morrer, diz respeito ao misturar-se e dissolver e nesse sentido aos quatro elementos divinos, água, ar, terra e fogo, que ele designava como a raiz de todas as coisas, sendo esses quatro elementos inalteráveis, apesar de ter a capacidade de separar-se. Assim surge o conceito de elementos, que “unindo-se dão origem a geração das coisas e, separando-se, dão origem a sua corrupção” (Reale e Antiseri, p.60), e para ele a causa da união seria o amor e da separação o ódio. “Tais forças, segundo uma alternância, predominam uma sobre a outra e vice-versa por períodos de tempo constantes, fixados pelo destino”...(Reale e Antiseri, p.60). Diz Empédocles: “Mas era igual por toda parte e por tudo infinito, Esfero redondo, que goza de sua envolvente solidão”. Se para Empédocles o universo é uma oscilação das forças de agregação do amor e desagregação do ódio, só haverá equilíbrio na constituição do Esfero. “Das coisas e seus poros, saem eflúvios que atingem os órgãos dos sentidos, de modo que as partes semelhantes dos nossos órgãos reconhecem as artes semelhantes dos eflúvios provenientes das coisas; o fogo conhece o fogo, a água conhece a água  e assim por diante (na percepção visual, porém, o processo é inverso, pois os eflúvios partem dos olhos, entretanto, permanece o princípio de que o semelhante conhece o semelhante)”( Reale e Antiseri, p.61). E assim é citado Empédocles: “Com a terra percebemos a terra, com a água, a água; com o éter, o éter divino; com o fogo, o fogo destruidor; com o amor, o amor; com a Contenda, a contenda dolorosa”. Para Empédocles Deus é o Esfero, e a alma do homem constituída de forças cósmicas. Em função de seus erros, vícios e culpa está na roda das reencarnações até expiar o último centil. Reale cita um de seus poemas:
“Também eu sou um desses,
errante e fugitivo dos deuses,
porque confiei na furiosa Contenda...
Porque um dia fui menino e menina,
arbusto e pássaro e mudo peixe do mar...”

Dessa forma é genial que Freud por outras vias e vielas acessa o “inacessível” para a ciência: a alma e sua imortalidade, como ele mesmo diz, sobre a dificuldade de acreditar não somente na concepção de que o instinto de morte reivindica “iguais direitos como sócio de Eros”, mas sem tocar na questão, principalmente para a psicanálise nascente, é possível supor que ele inconscientemente intuía, que a vida e a morte, não só não existe, mas faz parte de um ciclo de evolução da matéria e da alma, ou da psique, como queiram. Mesmo aquilo que aparentemente se configura como um caos está a serviço de um propósito maior, ou seja, da lei, harmonia e equilíbrio. É energia pura que vibra em diversas frequências. É assim que quando observamos um vulcão com suas labaredas e magmas a correr em direção ao mar, vemos que os quatro elementos divinos misteriosamente fluem unidos, não se combatem, mas cada um contribui com sua essência, para que algo novo surja, na sequencia de um propósito maior, isso com certeza encantou Freud e continua a nos encantar; essa harmonia da natureza, da nossa natureza e do universo.

Referências
FREUD, S. - ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937) Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
Reale, G. e Antiseri, D. – HISTORIA DA FILOSOFIA – Volume I – 2ª Edição – São Paulo, Paulinas, 1990

27 de maio de 2017

Sobre o Inconsciente


O inconsciente. “É a parte obscura, a parte inacessível de nossa personalidade; o pouco que sabemos a seu respeito aprendemo-lo de nosso estudo da elaboração onírica e da formação dos sintomas neuróticos, e a maior parte disso é de caráter negativo e pode ser descrita somente como um contraste com o ego. Abordamos o id com analogias; denominamo-lo caos, caldeirão cheio de agitação fervilhante. Descrevemo-lo como estando aberto, no seu extremo, a influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades instintuais que nele encontram expressão psíquica; não sabemos dizer, contudo, em que substrato. Está repleto de energias que a ele chegam dos instintos, porém não possui organização, não expressa uma vontade coletiva, mas somente uma luta pela consecução da satisfação das necessidades instintuais, sujeita à observância do princípio de prazer. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao id, e isto é verdadeiro, acima de tudo, quanto à lei da contradição. Impulsos contrários existem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito, podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica dominante, com vistas à descarga da energia. No id não há nada que se possa comparar à negativa e é com surpresa que percebemos uma exceção ao teorema filosófico segundo o qual espaço e tempo são formas necessárias de nossos atos mentais. No id, não existe nada que corresponda à ideia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo, e — coisa muito notável e merecedora de estudo no pensamento filosófico... nenhuma alteração em seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e ser destituídos de sua catexia de energia, quando tornados conscientes pelo trabalho da análise, e é nisto que, em grande parte, se baseia o efeito terapêutico do tratamento analítico” (Freud, p. 79)

A barbárie que reina no inconsciente diz respeito às marcas mnêmicas. É fato que o inconsciente é a parte obscura do nosso psiquismo, mas não inacessível. Essa acessibilidade dar-se pelo autoconhecimento em um tempo e espaço não cronológico. A cada sujeito o tempo de sua alma. A cada sujeito os recursos e caminhos particulares. Porque o que se conhece em sua grande maioria está no negativo? Por que na história da humanidade todos temos sangue nas mãos, sejam por quais ascendências vividas. Se é um contraste com o ego, o inconsciente ser um “caldeirão fervilhante”, há que lembrarmos que no prefácio de Jung para a tradução do I Ching – O Livro das Mutações tradução de Richard Wilhelm o caldeirão possui alimento espiritual profundo, só acessível através do autoconhecimento. Conhecendo-se, conhece-se o próprio mundo, a própria essência, o mundo, que se vive, viveu ou vai viver. Assim falar do inconsciente, uma instancia da mente atemporal e a-espacial é falar de sincronicidade. “para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores” (Prefácio Jung – I Ching). Se o I Ching  “descreve a si próprio como um caldeirão, isto é, como um recipiente de ritual contendo comida preparada. Deve-se entender comida, aqui, como alimento espiritual. Wilhelm diz a respeito”: "O Ting, enquanto um utensílio pertencente a uma civilização refinada, sugere o cuidado e a alimentação dos homens capazes, o que resulta em benefício da nação... Aqui a cultura atinge sua culminância na religião. O Ting serve para a oferenda de sacrifícios a Deus. Os mais elevados valores terrenos devem ser oferecidos em sacrifício a Deus... A suprema revelação de Deus encontra-se nos profetas e nos santos. Venerá-los é, na verdade, venerar a Deus. Os desígnios de Deus, manifestados através deles, devem ser aceitos com humildade". (Prefácio Jung – I Ching), Há que refletirmos que o inconsciente como caldeirão, é repleto de alimento, acessível a poucos guerreiros corajosos, que se aventuram a penetrá-lo, acessá-lo e beber dos ensinamentos de seus conteúdos e a curar suas feridas ou fazer as reparações necessárias à lei. Como diz Jung quando a “tristeza pela perda da sabedoria” tiver cessado, então nos aventuraremos nessa viagem incomum do autoconhecimento fora do tempo.

Sempre recorremos ao inconsciente quando não encontramos outra saída. Seja que nome damos a esse inconsciente ou o que nos religa a esse inconsciente. Podemos falar que o inconsciente possui argolas de jade e “o jade se distingue pela sua beleza e suave brilho... nos sonhos e nos contos de fadas, a avó, ou ancestral, frequentemente representa o inconsciente, pois esse último, no homem, contém o componente feminino da psique. Se o I Ching não é aceito pelo consciente, pelo menos o inconsciente, em parte, o aceita”. (Prefácio Jung – I Ching). Se o inconsciente o aceita é por que algo há que ainda não é permitido ao consciente ter acesso. “Na exploração do inconsciente deparamos com coisas muito estranhas, das quais um racionalista se afastaria com horror, afirmando, depois, que nada viu. A plenitude irracional da vida ensinou-me a nunca descartar nada, mesmo quando vão contra todas as nossas teorias (que mesmo na melhor das hipóteses têm vida tão curta) ou quando não admitem nenhuma explicação imediata. Naturalmente isso é inquietante e não sabemos, com certeza, se a indicação da bússola está correta ou não, porém a segurança, a certeza e a paz não conduzem a descobertas” (Prefácio Jung – I Ching). O que conduz a paz é o caminho do autoconhecimento, que implica na compreensão do sentido de todas as coisas vivenciadas e de todos os fenômenos que acontecem no percurso da psique, da alma ou como queiram da mente, da consciência, da vida, da renuncia das contingências egoicas. Pois o fortalecimento da essência se dá pela renuncias às contingências do ego.     

Referências
FREUD, S.. - CONFERÊNCIA XXXI – (1933[1932])  - Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

JUNG  C.G. - PREFÁCIO - I Ching -  O livro das Mutações – Tradução de Richard Wilhelm.  Tradução para o português Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto – São Paulo – Ed. Pensamento 2006.