31 de dezembro de 2014

A Perda e o Dever por Amor


Os ciclos da vida são intermináveis. Há tempo de plantar e de colher, de aumento e diminuição, de esperar e de realizar, de se aproximar e de se afastar, de ser forte e de ser suave, de falar e de calar... A transitoriedade da vida é inexorável. Tudo “passa”, tudo caminha para “frente”, com seu cordão ligado ao “passado”, pois o tempo é uma noção de organização da vida na terra e da história de cada pessoa. A transitoriedade é desagregadora, pois nos dá a noção do fim e ao mesmo tempo da continuidade da vida, pois o enigma da sobrevivência da alma não foi “resolvido” pela ciência. Há que transpor a concepção materialista da vida e retomar a metapsicologia da alma. A relação dialética entre nascer e morrer é infinitesimal. A todo instante bilhões de células nascem e morrem e diversos processos químicos se refazem dentro de nós e em nosso mundo. Nosso psiquismo trabalha velozmente em seus diversos sintomas em sua rede de condensações e conexões. Na relação especular com o outro, vários ecos múltiplos e marcas mnêmicas encontram afinidades ou diferenças, que diz respeito ao amor por si mesmo, que é o amor pelo outro e ao que idealizamos do outro, que “corresponde” ao que idealizamos de nós mesmos. Assim tudo que acolhemos ao longo da vida teremos que doar, nos acalma, pois não nos pertence, sendo o único caminho que pode esmaecer o sentimento de culpa na relação com o outro, é o saber o dever cumprido. E o que é o dever cumprido? É aquilo ao qual nos remete a Kant, que é o dever por amor.

Na reflexão do existencialismo “Ter” e “Ser” parecem inconciliáveis e de certa forma são, se o “Ter” não estiver a serviço do “Ser”. Na sequência de tempo que nos acompanha os ganhos, alegrias, gozos são na sociedade de consumo em que vivemos um “direito”, como se fosse possível vivermos no hedonismo, sem a lei. Como se o sofrimento e a falta, não nos estruturasse. Assim a perda que é a essência de nossa vida, pois trata do desapego e da renúncia, nos remete a falta, ao vazio que pertence a cada existência, seja pela implicação na lei interna, ou na ausência de um ser querido, nas identificações regressivas que representa, de um tempo e um lugar, que não mais existe. Isso define quem somos, porque representa o destino que damos às provações da vida. A perda nos remete as abstrações de toda uma ordem de significados e significantes, que são desagregados, resinificados, pois é necessário um afastamento dos representantes que alimentam as lembranças. Assim os sentimentos de desânimo, perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, diminuição dos sentimentos de autoestima, e quando surge reflexões sobre o afeto que não foi correspondido para com o objeto de perda, surge auto-recriminação e mecanismos de punição que podem sofrer conversão.

Desde que nascemos caminhamos ao longo da vida acumulando vitórias e perdas, que nos estruturam. As vitórias ficaram no passado e as perdas terão que ser “superadas” pelo luto. São fáceis as lembranças da vitória, mas as lembranças das perdas são difíceis, porque remete a nossa finitude e fragilidade. A devoção às situações de luto demonstra como é difícil substituir um objeto de amor. A dor psíquica expressa na dor física diz respeito à quantidade de energia investida que é liberada na perda. Esse é o teste de realidade a exigir que a energia investida seja resinificada. É assim que o apego ao objeto de amor pode significar uma oposição à substituição do mesmo, pois as lembranças e expectativas são carregadas de energia psíquica, de emoções fortes, que fragmenta o processo de economia de energia. O sentimento de dor e profunda tristeza na perda por morte ou separação são muito semelhantes. Sabe-se quem se perdeu, mas nem sempre o que perdeu. O objeto de amor ocupa sempre um lugar nos significantes conscientes e inconscientes de uma pessoa. O luto pode trazer uma imensa melancolia e a melancolia sempre traz o luto de algo, que nem sempre é possível saber. Há que haver "muito tempo" para o saber do que se perdeu. A questão é que a capacidade de amar, a energia, é rebaixada, pois necessita ser refeita. A vida parece perder o sentido, a insônia, a dificuldade em alimentar-se são sintomas que esvazia a energia investida.

Em cada experiência da vida, seja em que aspecto for o sentimento de “dever” por amor, constitui-se como o único acalentar nossas dores. Diante da perda a momentânea incapacidade para amar deve levar o sujeito ao processo de autoconhecimento. Quanto maior o autoconhecimento supõe-se que maiores recursos encontrará o sujeito de lidar com sua perda e menor será a perda em seu ego. A autocrítica diante da perda é extremamente difícil, pois em geral todos acreditam terem cumprido seu “dever” para com o outro, mas quando conflitos que precedem a perda não estão colocados em seu devido lugar, surge o sentimento de remorso e arrependimento. Há uma luta interna para apaziguar conflitos, cujo objeto não mais existe enquanto real. O que se revela é que esses conflitos dizem respeito ao sujeito, que necessita se implicar, o que requer esforço psíquico, gasto de energia, autoconhecimento e renuncia. Essa consciência requer uma compaixão para consigo próprio e um contato com a realidade de forma equilibrada. Mas é possível que emoções primitivas como ambição, egoísmo, arrogância, poder, enfraqueça ou elimine a tristeza, o luto, pois a ênfase recai na garantia dessas emoções, ou lugares que o sujeito ocupa ou gostaria de ocupar. Uma pessoa que diante da perda de um ente querido ressalta aos gritos seu afeto pode estar imbuída de forte sentimento de culpa e remorso. Bem como tudo o que expressa de críticas de si próprio, podem ser em relação ao outro e o que expressa de crítica em relação ao outro pode ser em relação a si próprio, estando assim longe de uma atitude de humildade e de equilíbrio ou uma auto punição irreconciliável a curto tempo.

Nesses ciclos intermináveis quando alguém que se ama parte, fica o amor, e na sequência do tempo as marcas, as sombras de um amor pelo outro. O deslocamento desse amor para outro sujeito, não “resolve” o sentimento de vazio, da ausência de um amor que não mais se vê. Embora o sujeito se interrogue quanto a seu destino, ante a perda de alguém querido, os deslocamentos patológicos, narcísicos são possíveis. Assim os possíveis conflitos existentes são compensados por uma conversão narcísica, onde ocorre uma enfática comiseração. A regressão da energia que foi investida em determinado objeto, seja ele qual for: um amor, uma pessoa, um trabalho, uma concepção filosófica, política de mundo, faz parte do processo de luto, que ameniza conflitos de ambivalência muito angustiantes. Adoecer é algo relacionado à imagem que cada pessoa tem de si mesmo e nessa imagem existem diversos mecanismos que levam a formação de sintomas, sejam porque já existia uma predisposição ou por uma ambivalência de sentimentos, difíceis de serem conciliados. É assim que a regressão se estabelece, como uma forma de retorno a um tempo que só foi possível na fantasia. Toda perda de objeto amado há que se haver com a estrutura de funcionamento psíquico. A luta vida-morte-vida... diz respeito ao funcionamento da vida e desejos, que muitas vezes são difíceis de serem apaziguados, principalmente quando existem sentimentos opostos como amor e ódio.

O amor enquanto essência não pode ser renunciado, mas a renuncia ao objeto de amor pode levar a uma satisfação sádica com o próprio sofrimento, que é constitutivo do sujeito, estendendo a todos os aspectos de sua vida. Punir objetos amados com o próprio sofrimento pertence ao sadismo como forma de evitar a tendência à depressão e ao suicídio. No fundo aqui estamos com o medo de destruição do ego, cuja defesa é a autopunição ou punição do outro seja pelo sadismo ou pelo suicídio, que são formas diferentes de domínio do ego. A perda deixará sempre sua marca mnêmica, que interrogará a identidade do sujeito colocando-o sempre diante do teste de realidade se os recursos psíquicos de que dispõe o sujeito forem escassos. No mecanismo de economia de energia, a depressão pode ser compensada por um estado de mania, gerando um funcionamento psíquico modular, embora o conteúdo possa ser o mesmo, apenas a forma de expressão é diferente.

No contraponto dos estados de depressão estão os estados de mania, e essas ondulações visam o equilíbrio psíquico e são difíceis de serem equalizadas, dependendo do quanto de energia possa existir em cada movimento. A depressão ou exaltação requer movimentos de energia em sentidos opostos, muitas delas tóxicas. Enquanto persiste o luto, este absorve as energias do ego, pois está sempre sendo confrontado pela realidade e se interrogando sobre seu destino e dessa forma pode optar por viver ou morrer. Para viver há que renunciar ao objeto amado. A ambivalência na relação com o objeto e os conflitos existentes com este, é constitucional. Os sentimentos de amor e ódio lutam no inconsciente e só fragmento desses vem à consciência. Dessa forma a dor psíquica e física é reduzida, o amor escapa à extinção, a vida prevalece e as feridas são acalentadas. Então ficamos com o comentário de Confúcio: "Que necessidade tem a natureza de pensamentos e preocupações? Na natureza, todas as coisas retornam à origem comum e se distribuem pelos diferentes caminhos. Através de uma única ação, os frutos de uma centena de pensamentos se realizam. Que necessidade tem a natureza de pensamentos, de preocupações?".

FREUD, S.  – LUTO E MELANCOLIA (1917[1915]), Obras Completas de Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

29 de dezembro de 2014

Fragmentos lacanianos...


“A constelação – por que não, no sentido que dela falam os astrólogos? -, a constelação original que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino e quase diria à sua pré-história, a saber, as relações familiares fundamentais que estruturam a união dos pais, mostra ter uma relação muito precisa, e talvez definível por uma fórmula de transformação, com o que aparece como o mais contingente, o mais fantasístico, o mais paradoxalmente mórbido de seu caso, a saber, o último estado de desenvolvimento de sua grande apreensão obsedante, roteiro imaginário a que chega como se fosse à solução da angústia ligada ao desencadeamento da crise”.

“A constelação do sujeito é formada na tradição familiar pelo relato de um certo número de traços que especificam a união dos pais”.

“Eis, portanto como se apresenta a constelação familiar do sujeito. O relato dela vai saindo, fragmento por fragmento, durante a análise, sem que o sujeito estabeleça qualquer ligação com o que quer que seja que aconteça de atual”.

“A constelação onde cada sujeito deve ocupar seu lugar de forma equilibrada, para manter a harmonia do circulo do qual faz parte, embora possa não corresponder a sua essência ancestral, insere-se em sua provação no núcleo familiar do qual faz parte” (p.19 – 21).
LACAN, Jacques - O Mito Individual do Neurótico – Jorge Zahar Editores, 2008

29 de novembro de 2014

Poesia - O deserto


Minh’ alma caminha,
na lembrança, a aridez do deserto,
nas feridas, as dores que não cicatrizaram,
nas dores, a solidão da saudade,
nenhuma nuvem, nenhuma chuva
o vento traz a areia,
que toca a alma,
ranhuras que vão se incrustando,
uma ostra no fundo do mar,
um carvão no centro da terra,
uma poeira estelar,
que continua andar pela dor,
ao retornar o caminho,
uma luz suave,
leva sua vestimenta,
necessita dormir por um tempo,
que não é um tempo, 
a luz vai e volta,
e assim a alegria aos poucos retorna,
pela presença amorosa,
e a suavidade sopra seus ventos
trazendo o frescor da chuva
em gotas de safiras.
Myriam’aya

23 de novembro de 2014

“A Concepção Quantitativa” e o Equilíbrio de Energia

Deriva diretamente das observações clínicas patológicas, especialmente no que diz respeito a ideias excessivamente intensas — na histeria e nas obsessões, nas quais, como veremos, a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal. Processos, como estímulos, substituição, conversão e descarga que tiveram de ser ali descritos (em conexão com esses distúrbios), sugeriram diretamente a concepção da excitação neuronal como uma quantidade em estado de fluxo. Parecia lícito tentar generalizar o que ali se comprovou. Partindo dessa consideração, pôde-se estabelecer um princípio básico da atividade neuronal em relação à quantidade, que prometia ser extremamente elucidativo, visto que parecia abranger toda a função. Esse é o princípio de inércia neuronal: os neurônios tendem a se livrar de quantidade. A estrutura e o desenvolvimento, bem como as funções (dos neurônios), devem ser compreendidos com base nisso.
Em primeiro lugar, o princípio da inércia explica a dicotomia estrutural (dos neurônios) em motores e sensoriais, como um dispositivo destinado a neutralizar a recepção de quantidade, através de sua descarga. O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: a origem da ação fornece o motivo para o movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do protoplasma, com a superfície externa irritável (de um organismo), que é interrompida por extensões consideráveis de superfície não irritável. Um sistema nervoso primário se vale dessa quantidade, assim adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares através das vias correspondentes, e desse modo se mantém livre do estímulo. Essa descarga representa a função primária do sistema nervoso. Aqui existe espaço para o desenvolvimento de uma função secundária. Pois, entre as vias de descarga, são preferidas e conservadas aquelas que envolvem a cessação do estímulo: fuga do estímulo. Em geral, aqui se verifica uma proporção entre a Q de excitação e o esforço requerido para a fuga do estímulo, de modo que o princípio da inércia não seja abalado por isso.
Desde o início, porém, o princípio da inércia é rompido por outra circunstância. À proporção que (aumenta) a complexidade interior (do organismo), o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento somático — os estímulos endógenos — que também têm que ser descarregados. Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades: como, respiração, sexualidade. Deles, ao contrário do que faz com os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se; não pode empregar a quantidade deles para a fuga do estímulo. Eles cessam apenas mediante certas condições, que devem ser realizadas no mundo externo. (por exemplo, a necessidade de nutrição.) Para efetuar essa ação (que merece ser qualificada de “específica”), requer-se um esforço que seja independente da quantidade endógena e, em geral, maior, já que o indivíduo se acha sujeito a condições que podem ser descritas como as exigências da vida. Em consequência, o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, a reduzir o nível da quantidade a zero). Precisa tolerar (a manutenção de) um acúmulo de quantidade suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica. Mesmo assim, a maneira como realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste modificada pelo empenho de ao menos manter a quantidade no mais baixo nível possível e de se resguardar contra qualquer aumento da mesma — ou seja, mantê-la constante. Todas as funções do sistema nervoso podem ser compreendidas sob o aspecto das funções primária ou secundária impostas pelas exigências da vida. 



Considerações sobre o texto de Freud “Primeiro Teorema Principal: A Concepção Quantitativa” do artigo Projeto para uma Psicologia cientifica. Imagem de Mark F. Bear, Barry W. Connors, Michael A. Paradiso – Neurociências (Desvendando o Sistema Nervoso) pg. 61  

As ideias intensas requer uma grande quantidade de energia, que impulsiona uma excitação neuronal. A quantidade e qualidade dessa carga e descarga de energia, deve ser mantida sob equilíbrio, uma vez que tanto a quantidade de carga, quanto a qualidade no sentido da afinidade com a estrutura psíquica, potencializa os sintomas de defesa e funcionamento do sujeito. Nas células a comunicação entre o líquido intersticial e o citosol, deve ser, para manter o equilíbrio, entre os íons de sódio (+) e de fosfato (-) e os íons de cloreto (-) e os íons de potássio (+), para que se mantenha o equilíbrio celular. De forma semelhante funciona o fluxo de energia psíquica. O princípio da inércia visa o equilíbrio, entre carga e descarga.
Se as superfícies, irritável e não irritável do sistema nervoso, necessita descarregar a quantidade de energia adquirida, para se manter livre do estímulo, interrompendo-o ou imprimindo uma descarga pois visa o, necessário, equilíbrio. Interrogar o que faz uma superfície neuronal ou psíquica, ser mais ou menos irritável é a interrogação da “escolha” de funcionamento, ou seja, está submetido a determinadas leis que ainda desconhecemos.
É assim que a psique diante das exigências da vida tem que “dar conta” de si mesma e dos mecanismos celulares que possuem funcionamentos específicos, e não funciona independente da psique.
A psique deve manter a quantidade de energia o mais baixo possível “e se resguardar contra qualquer aumento da mesma”. Isso é mantê-la constante e ao mesmo tempo trabalhar no sentido da extensão da consciência e diminuição do inconsciente. Uma batalha difícil que vai requerer alguns séculos de estudo e autoconhecimento.

FREUD, S.  – [1] (a) Primeiro Teorema Principal: A Concepção Quantitativa  (1950 [1895]), Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

16 de novembro de 2014

O Corpo e a “Introdução do Ego”


“Com efeito, porém, com a hipótese da “atração de desejo” e da propensão ao recalcamento, já abordamos um estado de neurônios impermeáveis, que ainda não foi discutido. Pois esses dois processos indicam que em sistema de neurônios impermeáveis se formou uma organização cuja presença interfere nas passagens (de quantidade) que, na primeira vez, ocorreram de determinada maneira (isto é, acompanhadas de satisfação ou dor). Essa organização se chama “ego”. Pode ser facilmente descrito se considerarmos que a recepção sistematicamente repetida de quantidade endógena em certos neurônios (do núcleo) e o consequente efeito facilitador produzem um grupo de neurônios que é constantemente catexizado (pg. 368 e 424-5) e que, desse modo, corresponde ao veículo da reserva requerido pela função secundária (pg. 406). O ego deve, portanto, ser definido como a totalidade das catexias de neurônios impermeáveis existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar um componente permanente e outro mutável (pg. 380, adiante). É fácil ver que as facilitações entre os neurônios impermeáveis fazem parte dos domínios do ego, já que representam possibilidades, se o ego for alterado, de determinar a sua extensão nos momentos seguintes”.
“Embora esse ego deva esforçar-se por se livrar de suas catexias pelo método da satisfação, isso não pode acontecer de nenhuma outra maneira senão por ele influenciar a repetição das experiências de dor e dos afetos, e pelo método seguinte, que é geralmente descrito como inibição”.
“Uma quantidade que irrompe em um neurônio a partir de um ponto qualquer continuará em direção à barreira de contacto que estiver mais facilitada, estabelecendo uma corrente nessa direção. Explicando com mais precisão: a corrente de quantidade se dividirá na direção das diversas barreiras de contacto na proporção inversa de suas resistências; e, em tal caso, quando uma fração se choca contra uma barreira de contacto cuja resistência é inferior a ela (barreira de contacto), não passará praticamente nada por esse ponto. Essa relação pode facilmente conduzir-se para cada quantidade no neurônio, pois poderão surgir frações que sejam superiores também ao limiar de outras barreiras de contacto. Assim, o curso adotado dependerá das quantidades e da relação das facilitações. Já conhecemos, porém, o terceiro fator poderoso (pg. 370-1). Quando um neurônio adjacente é simultaneamente catexizado, isso atua como uma facilitação temporária da barreira de contacto existente entre os dois, modificando o curso (da corrente), que, de outro modo, teria tomado a direção de uma barreira de contacto facilitada. Assim, pois, uma catexia colateral atua como uma inibição do curso da quantidade. Imaginemos o ego como uma rede de neurônios catexizados e bem facilitados entre si.”
“Suponhamos que uma quantidade penetrasse no neurônio a vindo do exterior para um sistema de neurônios permeáveis, então, se não fosse influenciada, ela passaria para o neurônio b; mas ela é tão influenciada pela catexia colateral - que libera apenas uma fração para b, e talvez nem sequer chegue de todo a b. Logo, se o ego existe, ele deve inibir os processos psíquicos primários”.
“Uma inibição desse tipo representa, porém, uma vantagem decisiva para o sistema de neurônios impermeáveis. Suponhamos que a seja uma imagem mnêmica hostil e b, um neurônio-chave para o desprazer (pg. 372). Então, se é despertado, o desprazer primariamente será liberado, o que talvez fosse inútil e que o é, de qualquer modo, (quando ele é liberado) em sua totalidade. Com a ação inibitória, a liberação de desprazer ficará muito reduzida e o sistema nervoso será poupado, sem qualquer outro dano, do desenvolvimento e da descarga de quantidade. Agora se torna fácil imaginar como o ego, com o auxílio de um mecanismo que atrai sua atenção para a nova catexia iminente da imagem mnêmica hostil, pode conseguir inibir a passagem da quantidade de uma imagem mnêmica para a liberação do desprazer por meio de uma copiosa catexia colateral que pode ser reforçada de acordo com as necessidades. E, realmente, se admitirmos que a liberação inicial de desprazer é captada da quantidade pelo próprio ego, teremos nessa mesma liberação a fonte do dispêndio que a catexia colateral inibidora exige do ego. Nesse caso, quanto mais intenso for o desprazer, mais forte será a defesa primária”.

Considerações sobre o texto de Freud [14] Introdução do Ego do artigo Projeto para uma Psicologia cientifica. Do desenho de Freud, propomos a imagem acima: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/28/artigo116936-2.asp
O Ego, o Eu, esse estado de consciência, que nos abrange revelando as histórias mais secretas da existência; esse ego que somos nós de forma tangencial, mas que nem por isso pertence a uma escala hierárquica psíquica, quando pensamos em superego e inconsciente, é pura energia. Para existir de forma integrada terá que recalcar os conflitos mais íntimos. Essa energia trafega pelo corpo através da rede neuronal permeável e impermeável, em intensidade e quantidade, que define o prazer ou a dor, permitindo que haja, sempre, uma reserva, reinvestida, no sentido do prazer e que essa reserva pode ser mobilizada. O ego é uma catexia, uma energia, mutável e para tanto percorre caminhos permeáveis e impermeáveis, (com ou sem bainha de mielina) a depender da frequência (quantidade/qualidade). O fundamental da liberação dessa energia é que ela passa pelo prazer e pela dor: “Embora esse ego deva esforçar-se por se livrar de suas catexias pelo método da satisfação, isso não pode acontecer de nenhuma outra maneira senão por ele influenciar a repetição das experiências de dor e dos afetos, e pelo método seguinte, que é geralmente descrito como inibição”.  Por certo que a ciência do século XX muito revelou sobre a neuroquímica complexa do cérebro, mas há muito que percorrer no refinamento dessa materialidade, transcendendo em um conhecimento a priori. Embora Freud afirme que “a corrente de quantidade se dividirá na direção das diversas barreiras de contacto na proporção inversa de suas resistências”, ou seja, onde possui mais resistência à entrada de determinada energia é menor. Por isso o curso e a entrada de energia dependerão das facilidades/dificuldades. A questão é quais facilidades/dificuldades, pois a energia em curso sofre múltiplas influências, que pode chegar atenuada, potencializada ou não chegar a seu destino. Se o ego inibe assim os processos primários ou não, acredito que não seja possível demonstrar ainda, pois se a energia que chega até ele é primária, primitiva, ou em processo de evolução, supomos que irá potencializá-lo a depender de suas circunstancias.  É assim que nos processos de memória é possível uma lembrança de sofrimento energizada, ser inibida, através de uma energia que entra e a atravessa. Esse funcionamento do sistema de defesa visa o equilíbrio do ego e a harmonia das pulsões, bem como a autocura.

Referência

FREUD, S.  – [14] INTRODUÇÃO DO EGO (1950 [1895]), Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

1 de novembro de 2014

“Tratamento da Alma” – “corte epistemológico”

Se pensássemos em uma cronologia metodológica esse seria o primeiro escrito a ser publicado nesse espaço. Mas lidamos com a livre associação e só agora foi possível esse texto. Muito se fala e escreve sobre tratamento psíquico. Importante relembrarmos que a psicanálise é uma concepção de pensar e tratar os fenômenos patológicos da alma ou de parte da alma, pela palavra ou linguagem e que atua em primeiro lugar na alma. Então “Psyche” uma palavra grega traduzida do alemão significa alma. Assim não é necessário rever a concepção de matéria, para concebermos a existência de uma alma. E como a palavra, a linguagem é um meio de representação, de acesso, cura, não deixa de ser mágica, misteriosa, cheia de significados e significantes. Em função dos grandes avanços, descobertas, na compreensão do corpo humano, foi delegada à filosofia a compreensão da alma.  Já faz um século que os médicos se preocupam com o tratamento desta.

Os estudos da medicina até então, com exceção de determinadas áreas da Psiquiatria, que continuam as pesquisas separando o físico do anímico, ou seja, mantendo a concepção de que as causas das doenças começam e terminam no físico, tem evoluído no sentido do que Freud tentou esboçar de uma metapsicologia. A relação entre o físico e o anímico é recíproca, embora em muitas circunstancias o anímico possa determinar o físico. São conhecidas pesquisas envolvendo conflitos psíquicos, e o desenvolvimento de doenças orgânicas. Há uma “variedade multiforme do quadro patológico; não podem fazer nenhum trabalho intelectual, em consequência de dores de cabeça ou insuficiência da atenção, seus olhos doem durante a leitura, suas pernas se cansam ao andar, ficando pesadas, doloridas ou dormentes, sua digestão é perturbada por sensações dolorosas, eructações ou espasmos gástricos, a defecação não se dá sem a ajuda de laxativos, o sono é abolido etc. Eles podem ter todos esses males simultaneamente ou em sucessão, ou sofrer apenas de uma seleção deles” (p.271-273). Esses sintomas falam de ansiedades, angústias, medos, que uma vez reelaborados terminam sem deixar nenhum vestígio. São as dores da alma que falam. Até o momento não foi possível encontrar relação entre esses sintomas e doenças no sistema nervoso como um todo, ou anomalias cerebrais. Em grande parte a influência da vida anímica, coloca-se como causa, possibilitando a interrogação do tempo e lugar dessa(s) causa(s).

O caminho de compreensão do normal pelo patológico é o viés de compreensão da mudança pelo sofrimento. Ao expressar as emoções, o humano, manifesta sua essência anímica. Assim as manifestações físicas das emoções muitas vezes revelam intenções, pensamentos que estão muito escondidos. E não há outra forma de dizer que “em certos estados anímicos chamados de “afetos”, a participação do corpo é tão evidente e intensa que alguns estudiosos da alma chegaram até a pensar que a essência do afeto consistiria apenas nessas suas exteriorizações físicas. São genericamente conhecidas as extraordinárias mudanças na expressão facial, na circulação sanguínea, nas secreções e nos estados de excitação da musculatura voluntária sob a influência, por exemplo, do medo, da cólera, da dor psíquica e do deleite sexual. Menos conhecidos, embora estabelecidos com plena certeza, são outros efeitos físicos dos afetos que já não são próprios da expressão deles. Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer, “depressiva”, tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da “felicidade”, vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afetos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas;” (p.274-275). As frustrações, derrotas, perdas, vulnerabiliza a saúde e o sistema imunológico, pelo estresse que causam, potencializando pré-disposições. Assim como a doença pode ser agravada por conflitos e afetos desagradáveis pode também obter melhoras significativas por afetos agradáveis, como o amor.

Os afetos são independentes do corpo, embora encontrem correspondência nesse. Os estados d’alma, como os pensamentos são afetivos e não necessitam de manifestações físicas. O estado psíquico assertivo, alegre, motivado para um objetivo, tranquilizador, pode influenciar em processos físicos de doenças. Mesmo que a dor não encontre um correspondente físico, ela não deixa de ser real, podendo ser reduzida ou elevada dependendo do limiar de dor do sujeito ou de sua resiliência. Dessa forma, frente a uma doença, os sentimentos do sujeito relativos à vontade de viver, de curar-se, a busca da espiritualidade, como demonstra estudos científicos http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34s1/a02v34s1.pdf http://scholar.google.com.br/scholar?q=psiquiatria+e+espiritualidade&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart&sa=X&ei=UBRVVLnyEY-eyATKooLQAQ&ved=0CBoQgQMwAA  contribui no processo de cura ou agravamento da doença. Uma doença que é recebida com afetos de raiva, ódio e revolta, desanimo, agregam componentes tóxicos ao organismo. De forma geral adoecem com mais frequências às pessoas que possuem medo de adoecer. Mas quando diante de uma doença há uma posição de aceitação, aprendizado, assertividade, confiança na cura, as expectativas de melhoras são muito maiores. Então não é prudente “recusar crédito a essas curas milagrosas e pretender explicar os relatos feitos sobre elas através de uma combinação de engodo devoto e observação inexata. Por mais que essa tentativa de explicação possa amiúde justificar-se, ainda assim não tem o poder de descartar por completo o fato das curas miraculosas. Elas realmente ocorrem, deram-se em todas as épocas e dizem respeito não só às doenças de origem anímica, ou seja, àquelas que se fundamentam na “imaginação” e podem justamente ser afetadas de maneira especial pelas circunstâncias da romaria, mas também aos estados patológicos fundamentados no “orgânico” e até então resistentes a todos os esforços médicos.” (p.277). O poder da fé recebe forças pulsionais, independente da concepção religiosa. A arte medicinal vem deste os primórdios da humanidade e tem passado por várias concepções, principalmente se compreendermos as diferenças entre ocidente e oriente.

Os profissionais de saúde que concebem sua atividade como um sacerdócio, do servir, uma arte, adentra ao estudo do espírito humano, sua essência e desenvolve uma relação de empatia com seus pacientes, que contribui e muito na melhora destes. Desde os tempos mais remotos, se busca a cura para os problemas da alma. Se o tratamento psíquico possibilita estados de alma favorecedores a cura, só resgatamos o que a humanidade faz a milhões de anos. Vários foram os métodos que o homem utilizou ao longo de sua história em busca de cura: desde os banhos com ervas para purificar, os oráculos, a meditação, as práticas de elevação espiritual, “só podem ter-se tornado curativos por via psíquica”. Assim há uma transferência da arte curativa das mãos dos sacerdotes e espiritualistas para os médicos e profissionais de saúde e nos tempos atuais vários grupos profissionais, principalmente de saúde mental retoma essa discussão pela via da espiritualidade, principalmente as pesquisas da psiquiatria e neurociência, o retorno aos estudos de Jung e os estudos da psicologia transpessoal, e da física quântica.

Nesse mundo “mágico” que é a psique, a “magia” das palavras assume um lugar de mediação do vínculo terapêutico. Como a palavra provoca modificações no sujeito ao serem faladas, pois ele se escuta e ao mesmo tempo essas palavras encontram ressonância no terapeuta e é por esse “devolvida” como interrogação, interpretação, reflexão, contribuindo para resinificar sofrimentos, eliminando sintomas patológicos. A possibilidade de não possuir o direito de escolher livremente seu médico, terapeuta, seja pela configuração do sistema de saúde pública ou pela configuração do sistema privado de saúde, somente sendo possível em atendimento particular, “aniquila-se uma importante precondição para influenciar o sujeito que sofre em termos anímicos”. Inexoravelmente, o “destino muitas vezes cura as doenças através das grandes emoções de alegria, da satisfação das necessidades e da realização dos desejos, com os quais o médico, amiúde impotente fora de sua arte, não pode rivalizar” (p.280). Seja qual for a abordagem terapêutica, o fundamental é o vínculo de confiança, estima e amorosidade que potencializa a relação de transferência, fundamental para a direção clínica, pois não é tarefa fácil o sujeito renunciar a seus sofrimentos, sintomas e gozos.

Referência
FREUD, S.  – TRATAMENTO PSÍQUICO (OU ANÍMICO) (1905), Obras Completas de Psicanálise - volume VII. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

5 de outubro de 2014

"Ganhar ou perder, o que mais adoece?"


A fama ou o corpo, o que mais se ama?
O corpo ou a riqueza, o que vale mais?
Ganhar ou perder, o que mais adoece?
Por isso o excesso de desejo causará um grande desgaste
E o excesso de acúmulos causará uma morte rica
Quem sabe se contentar não se humilha
Quem sabe se conter não irá se exaurir
Sendo assim, poderá viver longamente

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

21 de setembro de 2014

Saudade


Longing
Anhelo
Désir
λαχτάρα
געגועים
Özlem
Desiderans
 شوق
Saudade!
A saudade é de algo que está longe...
Em um tempo e lugar inacessível...
É como anelar, acariciar algo que “não se pode tocar”...
É um desejo que “não se pode realizar”...
No tempo e lugar atual...
Assim as almas similares se buscam...
Pelo perfume que exalam...
Por que em um tempo e lugar estiveram juntas!
E retornarão a cumprir seus destinos...
Saudade!
                                                                                             Myriam’aya 

19 de setembro de 2014

“Afetos e Estados de Desejo” – Dor e prazer

“Os resíduos dos dois tipos de experiências (de dor e de satisfação) que acabamos de examinar são os afetos e os estados de desejo. Estes têm em comum o fato de que ambos envolvem um aumento da tensão Qn (quantidade da ordem de magnitude intercelular) em sistema de neurônios impermeáveis — produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e, no de um desejo, por soma. Ambos os estados são da maior importância para a passagem (da quantidade) em sistema de neurônios impermeáveis, pois deixam atrás dele motivações para isso, que se constituem no tipo compulsivo. O estado do desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária”.
“A atração de desejo pode ser facilmente explicada pelo pressuposto de que a catexia da imagem mnêmica agradável num estado de desejo supera amplamente em Qn (quantidade da ordem de magnitude intercelular) a catexia que ocorre quando há uma simples percepção, de modo que a facilitação particularmente boa passa do núcleo do sistema de neurônios impermeáveis, para o neurônio correspondente do pallium”.
“É mais difícil explicar a defesa primária ou recalcamento — o fato de a imagem mnêmica hostil ser regularmente abandonada o mais depressa possível por sua catexia. Apesar disso, a explicação deve estar no fato de que as experiências primárias da dor foram eliminadas pela defesa reflexa. A aparição de outro objeto, em lugar do hostil, foi o sinal para o fato de que a experiência da dor estava terminando, e o sistema de neurônios impermeáveis, pensando biologicamente, procura reproduzir o estado de sistema de neurônios impermeáveis, que assinalou a cessação da dor. Com a expressão pensando biologicamente acabamos de introduzir uma nova base de explicação, que deve ter validade independente, ainda que não exclua, mas, pelo contrário, exija o recurso a princípios mecânicos (fatores quantitativos). No caso diante de nós, poderia perfeitamente ser o aumento de Qn (quantidade da ordem de magnitude intercelular), invariavelmente produzido com a catexia de uma lembrança hostil, que força o acréscimo da atividade de descarga e, com isso, também a drenagem da lembrança”.

Esse texto faz parte dos esboços inéditos das publicações psicanalíticas nos escritos de Freud sobre Projeto para uma psicologia científica. Aqui estamos lendo o esquema geral 13. Consideramos oportuna a análise sobre dor e satisfação, que começamos a percorrer no texto anterior http://www.caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2014/09/repressao-e-dor.html. A experiência da dor e da satisfação, por mais psíquica que possa ser é descarregada no corpo físico “na quantidade de magnitude intercelular, nos neurônios impermeáveis”, mielinizados. A modulação de energia no corpo,  psiquismo e na relação dialética entre essas instancias é complexa e demanda muitos estudos para o futuro. O que faz os afetos e  desejos trafegarem por essa via é que deixam atrás de si um rastro, que podem repetir-se. O desejo não é possível sem uma imagem mnêmica, que é desperta por uma repetição, uma condensação ou uma representação simbólica, um significante. Esse despertar, que é energizado, pode desencadear uma sensação de prazer ou de dor e assim a manifestação da defesa. A energia da “imagem mnêmica agradável”, ou seja, do significante, supera a “magnitude da energia intercelular”, da simples percepção. Por isso se diz que “ o corpo não responde à energia psíquica”, pois a limitação orgânica dos neurônios impermeáveis, controlam a quantidade de passagem da energia. É certo que a imagem mnêmica desagradável, não é energizada e rapidamente descartada. É o recalcamento. Assim as primeiras experiências desagradáveis ou de dor, na mais tenra idade são recalcadas e ao mesmo tempo “força o acréscimo de descarga” e da liberação da lembrança. Subjetivamente outro objeto é tido como substituto e biologicamente o “sistema de neurônios impermeáveis” opera a cessação da dor.

Referência
FREUD, S.  – Afetos e Estados de Desejo (1886-1889), Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

13 de setembro de 2014

“Repressão” e Dor

O que tem de importante na repressão? Podemos responder tudo, mas ressaltamos a formulação de Freud sobre a formação de sintomas. Na repressão está a estrutura psíquica, pois ai está o fenômeno clínico da resistência. Quanto maior a repressão dos conteúdos psíquicos conflituosos ou de sofrimentos, maior a resistência. Podemos utilizar também o termo defesa em relação à repressão, pois se reprime aquilo do qual se necessita defender-se. Na neurose histérica a repressão funciona expulsando a ideia da consciência. Na neurose obsessiva a repressão funciona deslocando a energia emocional para outros objetos. Assim a forma como a repressão funciona depende da estrutura clínica. A repressão existe enquanto um mecanismo de defesa do ego em relação aos conflitos que desencadeiam sofrimento psíquico. Uma vez que a pulsão de energia na repressão é intensa, a ansiedade também.

O instinto transforma-se em repressão no caminho que percorre no ego para realizar-se, mas depara-se com a condenação. O livre curso do instinto sofre repressão porque sua realização causaria grandes estragos, mas estes continuam latentes em função da demanda do instinto, que necessita ser reelaborada. A demanda de um instinto pode ser tão intensa, que causa estrago em algum órgão do corpo humano. A doença é, então, uma forma de escoamento desse(s) instinto(s), contribuindo para aumentar a tensão psíquica e física, que é compreendida como dor. A dor é imperativa, difícil de ser estancada. Pode ser temporariamente “esquecida” com uso de alguma substancia ou uma distração mental. A dor só pode ser cessada mediante um evento agradável, que contribua para a sublimação.

Por certo que a dor é obscura, não é palpável, embora possa atingir órgãos, mas continua sendo subjetiva. Cada pessoa possui seu limiar, dado a suas circunstancias psíquicas. Mesmo um instinto tão primário e imperativo como a fome, quando não é possível satisfazer-se através dos alimentos, encontra outras vias, pelas substancias para “realizar-se”, e aliviar a tensão, que é gerada pela necessidade. Então a repressão age por substituição do objeto, numa relação de prazer e desprazer. Age afastando o sofrimento do consciente, tornando-o inconsciente pelo esquecimento. Enquanto fazendo parte da arquitetura psíquica é possível pensar a repressão como um mecanismo que existe desde sempre, como forma de impedir que determinados conteúdos cheguem ao consciente. É então uma marca, um ponto de fixação, em que o instinto permanece ligado.

A repressão afeta diversas sequências de pensamento, que são representes dos conteúdos reprimidos e que têm alguma ligação com o reprimido. Assim, essas sequencias de pensamento são também reprimidas. Ao tempo em que o consciente repudia os conteúdos que são reprimidos, os conteúdos reprimidos buscam ligação com “novos” conteúdos, que possam representá-los. Portando os conteúdos reprimidos necessitam ser reelaborados, desvelados, interpretados, para que a demanda dos instintos se esvazie, se reformule, seja sublimado, senão continuará se proliferando sob formas e representantes extremos perigosos. Importante ressaltar que permeia todo esse mecanismo aquilo que chamamos subjetividade, enevoada pela fantasia. Instinto e fantasia podem ser potencializadores, e comprometer a relação com o real. Nesse percurso está o tempo do inconsciente e do consciente, possibilitando que os derivados se afastem do representante reprimido, seja pelas distorções, associações, novas ligações para acessar o consciente. A intenção é que o reprimido consiga passar pela censura do consciente e então construir novas possibilidades de interpretação, mesmo que distorcidos no tempo. Fica assim o enigma do existir humano, em que o véu de Maya é o tempo do inconsciente.

As sequencias de pensamentos que ligam por associações as relações com o reprimido pode tornar evidente a tentativa de repressão, que se expressa pelos sintomas, que são “derivados do reprimido”. O afrouxamento da repressão dá-se por processos de comprometimentos do ego, as psicoses, perversões. Mas é possível na relação transferencial em análise ocorrer esse relaxamento, o que possibilita acessos a conteúdos inconscientes mais conflituosos. O delicado movimento e equilíbrio de revelação dos conteúdos que habitam o mais profundo inconsciente implicam no equilíbrio da energia do inconsciente (que ainda não é possível ser medida), quando “alcança certa intensidade”, que possibilitaria vencer a resistência. Assim a repressão age por etapas individuais, em determinadas marcas mnêmicas em espacial de forma a manter o equilíbrio. Se os sintomas, a fantasia, as distorções, modulam esse equilíbrio, por certo necessitam da energia dos neurotransmissores, podendo ser reinstalada posteriormente. O chiste, por exemplo, é um representante instintual e como tal pode ser individual, possuir movimento e reaparecer sob diversas expressões. Tanto a repressão como afrouxamento dessa exige um dispêndio de força, energia. “Podemos supor que o reprimido exerce uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante” (p.156). O movimento de economia e dispêndio de energia abrange não só o estado de vigília como o estado de sono, que possibilita a formação dos sonhos.

O impulso (ideias, grupo de ideias, necessidades) pode ficar adormecido com pouca energia psíquica e semiconsciente. Ao ser energizado em diversas intensidades e formas, seja pelas vicissitudes da vida ou porque está inserido na estrutura psíquica, revela-se na consciência, sem, contudo excluir a repressão, podendo gerar muita dor. Se for algo conflitante na consciência, a repressão atua. A quantidade de energia movimenta os conteúdos e impulsos no inconsciente e muitos desses são sentidos como afetos, e expressos com sua carga de dor. É o “fator quantitativo do representante instintual”. É o mesmo que não atender um telefonema indesejável ou atender e após reconhecer a procedência do telefonema impedir que a conversação continue. Há muitos enigmas quanto ao  representante instintual. Às vezes não é possível encontrar vestígio dele, outras vezes é temporariamente suprimido, ou aparece transformado como ansiedade ou outro sintoma. Assim aquilo que pode transforma-se em dor é reprimido. Nesse sentido a repressão pode falhar e ser submetida ao nosso exame. O que sinaliza e revela a repressão é o sintoma, mesmo que seja por uma formação substitutiva, mas a repressão em seu curso deixará rastros.

A repressão possibilita a formação substitutiva do desejo e a formação de sintomas, ao mesmo tempo em que estes são também “retorno do reprimido”. Portanto a formação substitutiva e a formação de sintomas são complexas e está aliada a estrutura psíquica e esta ao mecanismo da dor. Assim, medo, ansiedade, angústia, impulsos e instintos diversos podem possuir diversas formações substitutivas e serem formações substitutivas. O trajeto consciente – inconsciente dos conteúdos e representantes ideacionais, trafega no corpo por inervações, seja sensorial, motora, inibindo, excitando, condensando, deslocando. Esse trajeto psíquico-corpo é em alguns momentos interrompido, ou segue um percurso ininterrupto. Os sintomas da defesa psíquica sejam de conversão, obsessiva, delirante, alucinatória, maníaca, depressiva, sádica, conflui em formações substitutas, que podem ser frágeis, fazendo com que a repressão fracasse. Assim as emoções reprimidas, esquecidas, desaparecidas, retorna como ansiedade, autocensura, autopunição. O fracasso da repressão ou da defesa implica como já falamos outrora no retorno do recalcado. Portanto compreender o passado é curar o presente e plantar sementes novas para o futuro.

Referência
FREUD, S.  – REPRESSÃO (1915), Obras Completas de Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

7 de setembro de 2014

O Inconsciente e suas Razões...


...a discípula estava diante de seu mestre...
Suas almas se tocavam como duas chamas de amor...
Então ela perguntou-lhe:
- Mestre, quando terminará essa imensa distancia entre nós?
- Sendo tão dedicada e disciplinada, amando-o com tamanha intensidade e devoção...
- Porque continuo sofrendo, enquanto vives em tão belo lugar translúcido?
Então o Mestre lhe responde:
- “pequena” aprendiz, o que vês são teus sonhos sobre mim...
- Amo-te com a mesma intensidade e devoção...
- Como podes ignorar a imensidão de meu sofrimento?
Apenas pela separação do lugar em que vivemos?
- Meu sofrimento é igual ou maior do que o teu, por ver-te tocada e ferida...
- Mas para o meu e o teu aprendizado é necessário que seja assim.
- Somente quando esse intenso amor e devoção que compartilhamos, nessa similaridade que nos une, for transmutado para toda a humanidade...
- é que nos será permitido, por Deus, nos encontrarmos novamente...
- e quem sabe se soubermos repartir esse imenso amor de Deus, que sentimos um pelo outro, a toda a humanidade, nos seja permitido caminharmos juntos por toda a eternidade...
e suas almas se tocavam como duas chamas de amor...
Myriam’aya

8 de agosto de 2014

Anotações: Psicanálise e o “Transtorno Bipolar”

As estruturas clínicas estudadas pela psicanálise e que norteiam a clínica psicanalítica diz respeito a Neurose Histérica (Os sintomas fazem a conversão no corpo), Neurose Obsessiva (Os sintomas revelam-se em um processo de repetição intrincado, que o DSM-IV irá definir como TOC), as Psicoses - Maníaco- depressiva, esquizofrenia e paranoia – (Os sintomas revelarão um afastamento da realidade, os delírios, alucinações) e Perversão (Os sintomas irão revelar um prazer sádico). A “escolha” da estrutura clínica continua como objeto de pesquisa,  embora o desenvolvimento das fases e a formação do recalque e do superego sejam potencializadores.
Essas estruturas são compreendidas como estruturas de defesa, construídas no processo de desenvolvimento do sujeito, são permeadas pelos sintomas, que são representações dos recalques - retorno do recalcado - de vivências que foram traumáticas ao longo da vida.

A compreensão de arquitetura psíquica estende-se do inconsciente, (abriga os conteúdos que não foram possíveis de resinificar, elaborar) o superego (a lei, a censura) e o consciente (aquilo do qual afirmamos como consciente).
As fases do desenvolvimento do sujeito:
Oral – o prazer pelos alimentos e tudo que a criança leva à boca, desenvolvimento da fala.
Anal – desenvolvimento do controle esfincteriano: o prazer ou desprazer em expelir partes do seu corpo.
Genital – descoberta das diferenças anatômicas entre meninos e meninas. Inicio da masturbação, descoberta do próprio corpo. 
Na triangulação do Édipo; pai, (cuidador ) mãe (cuidadora ) filho, situa-se a escolha do objeto sexual no processo de identificação.
Na descoberta do outro, enquanto separado, está situado a questão do narcisismo, que em um primeiro momento direciona toda a pulsão de amor para si mesmo e no percurso do desenvolvimento para os objetos.
Importante ressaltar que os conflitos vivenciados ao longo dessas fases e a intensidade do recalque, da castração, da lei (imersão na cultura) irão potencializar as estruturas de defesa. O tempo dessas fases, embora possa compreender períodos biológicos, lembramos, que o tempo no inconsciente não é o tempo biológico, podendo permear por toda a vida a fixação em uma fase.
A direção clínica situa-se:
Transferência – a relação com o analista.
A livre associação – associação entre os sintomas, fala e vivências primárias.
Diagnóstico Diferencial – qual ou quais estruturas em questão.
A cura pela fala – ao falar o sujeito se escuta.

Quando falamos de Bipolar estamos falando de mania e depressão. Dessa forma o Transtorno do Humor (Transtorno Bipolar I e II) podem situar-se dentro de qualquer estrutura clínica em maior ou menor intensidade. Mesmo porque de alguma forma haverá traços de mania, depressão, delírio em todas as estruturas de defesa.
Quanto à questão do diagnóstico diferencial que o DSM – IV coloca em relação à definição de Bipolar I, período distinto de humor anormal, seja com autoestima inflada ou grandiosidade, redução da necessidade de sono, pressão por falar, esquecimentos, atenção desviada, agitação psicomotora, envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um alto potencial para consequências dolorosas. O episódio  pode ser misto (mania e depressão). A perturbação do humor é grave a ponto de causar danos a si mesmo a terceiros, ou existem características psicóticas. Essas diferenciações podem ser encontradas em todas as estruturas, podendo ser pontuais, circunstanciais.
Em relação à definição de Bipolar II, histórico de um Episódio Depressivo Maior, ou Episódio Hipomaníaco ou não ter ocorrido um Episódio Maníaco ou um Episódio Misto e não deve haver indícios de Psicoses, também podem ser encontrados nas estruturas clínicas e o que irá diferenciá-las é o maior ou menor afastamento do ego em relação à realidade.

Quando a psicanálise compreende esse outro em sofrimento psíquico, é um outro,  sujeito de sua história, com sua subjetividade, complexidade, abarcando nessa arquitetura psíquica o simbólico, imaginário o real, que confluem-se no que Lacan designa por nó borromeano, imerso na cultura da qual faz parte. Encerrá-lo em uma categoria é sentencia-lo, muitas vezes para o resto de sua vida. Quando pensamos em estruturas, pensamos de forma dialética, possíveis de serem reelaboradas e que os sintomas são possíveis de serem senão curados de todo, mas acolhidos, acalentados, atenuados, no sentido de diminuir o sofrimento psíquico, embora muitas vezes com os recursos psíquicos que o sujeito dispõe estabelecer um processo de cura.