10 de dezembro de 2016

Poesia - Amor Eterno...


Esse amor... centelha que ilumina,
imagem indefinida...
exilada, peregrina entre desconhecidos...
tua imagem no perfume que exala...
tempos, lugares...
o perfume de tua presença
na tua “ausência”
teu amor com devoção...
faz tua alma cheia de amor...
a separação, dor...
o perfume desse amor...
nos mantém unidos,
exala pela eternidade...
para todos os seres...
profundo, intenso,
não pode pertencer...
somente a nós...
essa centelha, que nos habita...
doamos a todas as almas...
e assim permanecemos unidos.

Myriam’aya

A Contextura psíquica do ódio - “Síntese”


 7. “Síntese”

Amor... “Pois de amor andamos todos precisados!
Em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija,
Nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para frente...” Carlos Drummond de Andrade

Não foi nosso objetivo refletir sobre o ódio abordando-o em uma estrutura neurótica, psicótica. Nosso objetivo foi abordá-lo naquilo que é mais difícil nesse momento da história humana, que se dissemina pelo planeta: é o ódio perverso, sádico. Embora esse possa “atravessar” qualquer estrutura, com contornos que assumem outras diferenças significativas. O que vivemos no planeta nesse momento da civilização deve interrogar a todos, seja como indignação, como falta de esperança, “como o tão falado fim dos tempos”, mas não podemos deixar de nos interrogar, de como compreender esse mundo e reconstruí-lo na paz, em nossa reumanização.

Escrever um artigo, com seis capítulos, sobre o ódio é tarefa difícil, árdua, incompleta, inquietante, angustiante, em muitos momentos. Mas é o dever ético de contribuir com a reflexão de um afeto tão complexo e com muita ênfase na civilização em que vivemos atualmente no planeta, para que, começando a compreendê-lo, possamos vislumbrar a paz. Longe de ser uma “síntese” é mais uma reflexão. A evolução do homem e seu psiquismo supõe a sublimação dos instintos primitivos. Evolução de uma relação saudável com o outro. Portanto há muito que caminhar através de décadas e séculos na superação desses instintos tão presentes, ainda hoje, no planeta. As guerras, os conflitos, os ódios, na atual evolução tecnológica, desta civilização, é o sintoma de uma desagregação moral, de uma necessidade sádica de vontade de poder, da construção, alimentação de ressentimentos, mágoas e ódios para dominar e matar não só pela passagem ao ato, mas simbolicamente, uns aos outros pelo prazer sádico e perverso. Há uma desagregação do superego, da lei simbólica. O que leva esses sujeitos a fazer essa “escolha”, é o que Freud define como o “poder sombrio do destino, que apenas poucos dentre nós são capazes de encarar como impessoal”. Porque encarar como impessoal é afastar-se da compaixão para com o outro, ou seja distanciar-se de si mesmo. Se os homens ainda sentem que precisam sofrer, odiando-se mutuamente, alimentando um sentimento de vingança, disputa, domínio é porque necessitam expiar seu masoquismo e sadismo moral, que ainda demanda a lei, o superego. Há uma submissão a si próprio, uma escravidão própria, o ego submete-se ao sofrimento, do masoquismo e/ou sadismo seja infringindo-o a si próprio ou ao Outro, na “esperança” de que punindo-se ou punindo o Outro, irá conquistar sua liberdade. Que esperar de algo que “faz opção” pelo sofrimento, para além do princípio do prazer? O cansaço que advêm da caminhada, quando então a marcha levanta a poeira e aquele sentimento de ódio guardado, no mais profundo do inconsciente por séculos, décadas, ignorado pelo próprio sujeito descola-se por uma fração se segundo, e isso, pode ser o suficiente, para que se descole definitivamente. 

O cansaço pode ser a chamada “luz no fim do túnel”. Mas não é só a temperatura do meio ambiente do planeta que está subindo, porque a temperatura simbólica, o ódio flamejante está aumentando. O materialismo com seu desejo de poder tudo “consome”. Os homens investidos de autoridade institucional, quando, afastam-se da realidade, fantasiam, ou alucinam a um poder absoluto. Veem o Outro como não pertencente ao humano. O desejo de poder afasta o sujeito da realidade, aproximando-o do sadismo que é constituinte de uma estrutura perversa. E esta necessita muitas vezes, de uma fagulha que é o ódio para que venha a tornar-se o combustível.

Expurgar o ódio requer um gasto de energia, pois a rememoração traz de volta o afeto, nem sempre de forma pacificada, mas como ele foi vivido em determinado momento. Então é possível que esse ódio inconsciente, que o sujeito sequer saibe que existe e como todo reprimido retorna, assim que é ativado por uma lembrança. Supõe-se muitas vezes, não na mesma intensidade, mas com outro componente que é a dor. O ódio é um sentimento que pode ser esquecido, com o tempo, fica adormecido, onde o sujeito acredita não mais odiar, onde acredita que esse afeto nocivo está elaborado, “resolvido” substituído por afetos positivos de amor. Mas basta uma representação mnêmica para que ele retorne. Em muitas situações, não com a mesma força, mas com quantidade e qualidade correspondente a sua diluição no tempo. Não haver limite para externar o ódio, seja para qual for a representação subjetiva, social, subverte-se mais do que o estado de direito, mas  a própria lei subjetiva interna  de cada um. Então surgem os sujeitos nos seus instintos primitivos.

O ódio em muitas circunstancia, funciona enquanto instancia primária de defesa, como uma forma do sujeito se manter ligado aos seus objetos ou “acalentar” suas feridas. A passagem ao ato pode funcionar como uma descarga para o próprio sujeito com seus diversos representantes. Portanto permitir que ele se descole, gera um vazio, que precisa ser preenchido pelo perdão. É estancar as próprias feridas, é trilhar o caminho da reconstrução psíquica, mas isso não é tarefa fácil. Quando a dor do ódio causar um incomodo físico, ela começa a criar as condições para ser drenado e curado. Drenar o ódio é refazer o percurso das dores e sofrimentos, reelaborando-os. Caminho difícil, espinhoso, cheio de renúncias, atemporal. O que “define” isso é uma insuportabilidade da negação do sujeito pelo “mundo” que o rodeia, uma repressão da dor, que não foi possível ser externada ou foi pela revolta, pelo ato de destruição do outro. Ele se torna um nada, por maior que seja o seu sadismo. E a um nada não cabe uma existência corpórea, porque seu corpo e sua subjetividade já foi negada pela indiferença do mundo que compõe o universo do sujeito.

Ao drenar o ódio o sujeito se implica consigo mesmo, se interroga. Assim surgirá uma revolta, uma projeção da própria culpa, uma passagem de algoz a vítima, a indiferença, um remorso, um sentimento de culpa, a necessidade do próprio resgate e da reparação. Então começará a surgir o senso ético, moral e as renuncias instituais primitivas. O amor ainda é aqui um afeto ideal, mas “inexistente”, porque o sujeito “não possui experiências com o mesmo” ou perdeu. O modelo do ideal, dá o caminho a ser percorrido, mesmo que esse caminho a ser percorrido, seja o da eternidade e o afasta dos instintos primitivos, no sentido de renunciá-los. A resiliência é o registro do destino, do sofrimento na memória e os recursos utilizados para lidar com ele. Um novo sofrimento é a “prova” da resiliência. A dor fica, até ser reelaborada como força energética. O amor, esse sentimento oceânico, como dizia Freud, parece destituído da relação sujeito-objeto, e tudo se transforma em algo do qual faz parte e está interligado, subjetivado. Mas o amor transcende a consciência, o tempo, como o compreendemos. É possível que fique “esquecido”, para que possa encontrar outros objetos de representação que necessitam dessa doação. O imperativo categórico do amor é a verdade, no sentido de justiça moral, ética e liberdade.

Nossa “vidinha” cotidiana nas seduções mundanas nos afasta dos propósitos da existência de cada um de nós e nos joga no abismo do "nirvana" narcísico patológico. Vivemos em uma civilização com muita evolução tecnológica, mas isso não se reverte para a evolução da consciência humana, da moral, da ética, solidariedade, da compaixão, do sentimento universal de uma só irmandade na terra, desde a relação com a natureza, os vegetais, os animais, a água, e todos os recursos disponíveis. Ainda não nos sentimos irmãos dos nossos irmãos humanos, tão pouco de nossos irmãos vegetais, animais, minerais etc. Não nos sentimos integrados à natureza, ao universo, como se as leis que nos governam, não fossem as mesmas leis da natureza e do universo. Assumimos o lugar de deuses sem alma, somos totens de nós mesmos, nos adoramos, pelo nosso egoísmo, avareza, inveja, competição, arrogância, vontade de poder. Há que resgatar nossa relação com nossos ancestrais, com nossa espiritualidade, seja qual for à forma em que está se expresse. Há que nos religarmos com a natureza e o universo. Porque o corpo é composto de minerais, átomos, água, energias, vibrações, mas ainda não compreendemos. Sequer pensamos nos universos paralelos que a ciência começa a estudar. Então, o que há entre nós e o espaço onde habita as estrelas pertence ao desconhecido, que só o inconsciente pode ter alguns traços mnêmicos.

É por isso que a humanização requer infinitos aprendizados, mas “a carícia não quer simples contato; parece que o homem sozinho pode reduzi-la a um contato, e, então, ele perde o sentido próprio da carícia. Isso porque a carícia não é simples toque: é um modelar. Acariciando o outro, faço nascer sua carne pela minha carícia, sob meus dedos. A carícia é o conjunto de cerimônias que encarnam o Outro. Mas dir-se-á o outro já não estava encarnado? Para ser exato não. A carne do outro não existia explicitamente para mim, já que eu captava o corpo do Outro em situação; tampouco existia para o outro mesmo, posto que ele a transcendia rumo às suas possibilidades e rumo ao objeto”. (Sartre, p. 485). Acariciar não só no sentido do toque suave ao corpo do outro, pelo abraço, pelo deslizar do olhar, das mãos, da voz, mas pela suavidade do contato subjetivo, pela quietude de respeito à vida do outro, pela responsabilidade em cada palavra ou silêncio proferido, pela lealdade com a verdade do amor, da compaixão, da solidariedade, da irmandade, da escuta delicada, acolhedora, do tempo a ser dedicado a cada pessoa, do cuidado afetivo, de saber que a construção de uma família, uma comunidade, um país, um planeta humano, passa necessariamente pela renuncia dos instintos primitivos, pela superação da promiscuidade em todas as suas formas, representações, do preconceito e suas variantes, do “tirar vantagens matérias” entre os diversos sujeitos, pela superação da vingança, pela conquista do perdão. Temos que seguir na terra olhando o céu com a luz das estrelas e o destino como o curso do rio. Pois o amor ao preencher o vazio que o ódio estancado, drenado deixa, cura todas as feridas deste, que nasce dos punhais  encravados na alma. Só o amor cura e liberta de todos os erros cometidos por ódio, arrogância, vaidade, apego. Porque a vida é essa delicadeza fugaz, que se revela de instantes a instantes na luz do amor.

Referências
FREUD, S. PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO (1924). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
LACAN, Jacques -  O SEMINÁRIO, Livro 10, a angústia. A Causa do Desejo. Rio de Janeiro, Zahar – 2005
SARTRE, Jean-Paul – O SER E O NADA – As Relações Concretas com o Outro. Editora Vozes, 15ª edição, 2007

4 de dezembro de 2016

Poesia - A palavra


A palavra pode unir os homens,
a palavra pode também separá-los,
a palavra pode servir o amor
como pode servir a amizade e o rancor.
Livra-te da palavra que pode provocar o ódio.

Leon Tolstoi

3 de dezembro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - O desejo e o ódio



6. O desejo e o ódio

Odeia-se o objeto de desejo que está fora da lei, e assim odeia-se o próprio desejo fora da lei, odeia-se a se próprio. É a foraclusão na perversão. É difícil colocar uma causa para o desejo, porque essa pertence a camadas muito profundas do inconsciente. Ao se pensar na formula do “sujeito dividido” é possível supor na perversão, um sujeito e um objeto para o sádico. O objeto aqui, ao contrário do que supõe Lacan, não está no campo do idealismo, como único ponto de encontro com o real, pois o objeto do desejo, nem sempre está à frente. Fora da estrutura perversa é intuitivo, sensorial. O objeto está atrás do desejo, porque o objeto é sujeito. “O desejo do sádico é exaustivo em todas as relações com o objeto. O desejo sádico, com tudo que comporta de enigmático, só é articulável a partir da esquize, da dissociação que ele almeja introduzir no sujeito, no outro, impondo-lhe, até certo limite, o que não poderia ser tolerado – até o limite exato em que aparece no sujeito uma divisão, uma hiância entre  de sujeito e o que ele sofre,  aquilo de que pode padecer em seu corpo.  Não é tanto o sofrimento do outro que é buscado na intenção sádica, mas sua angústia” (Lacan, p.117). O sádico deseja mais do que o corpo do objeto, deseja sua alma. O sádico deseja “fazer vibrar” a angústia do outro. Quanto maior a angústia do outro, maior o prazer do sádico, mas e a angústia subjetiva não manifesta? É ai que o sádico se perde. No contraponto da “causa do desejo”, Lacan considera que “Kant articulou como a condição de exercício de uma razão pura prática de uma vontade moral propriamente dita, na qual ele situa o único ponto em que pode manifestar-se uma relação com um puro bem moral” (Lacan, p.117). A questão é que Lacan “esquece” que para Kant a filosofia é a crítica da própria razão, e que, portanto irá se interrogar e interrogar o próprio desejo, o que não procede ao desejo sádico. Assim no conhecimento pela razão pura crítica, há que interrogar o que a razão pode conhecer e entender pela transcendência. Ou seja, essa interrogação não habita o universo do sujeito que odeia. Quando o ódio faz um estrago muito grande no sujeito que odeia, ele quer se livrar do ódio, pela mesma via sádica consigo próprio, mas isso que poderia ser uma resinificação e reelaboração percorre inúmeras vezes a via da repetição.

O que caracteriza o desejo sádico é o rito, embora ele não “saiba” o que procura. Ele procura ser o próprio objeto de prazer da sua vítima pelo sofrimento que imprime a esta, pelo ódio que abriga em sua ferida psíquica. Mas sua dor tornou-se sua forma de prazer. Para ele o princípio do prazer se realiza como dor. Como esse prazer encontra um esgotamento nele, ele precisa de um objeto que não seja ele mesmo. Ele que já fez um trajeto no masoquismo, mas se esgotou. Para o masoquista sair de sua posição de “resto”, objeto de si mesmo, necessita de um outro, que ele não vê como “resto” ou se esse outro sujeito se coloca como “resto” por certo cairá em sua teia sádica. A maldade seja para consigo próprio ou para com o outro é a elaboração do desejo sem a lei, onde se supõe “possível”, ignorá-la. “O mito do Édipo não quer dizer nada senão isto: na origem, o desejo como desejo do pai, e a lei são uma e a mesma coisa. A relação da lei com o desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo. O desejo, como desejo pela mãe, é idêntico à função da lei. É na medida em que proíbe esse desejo que a lei impõe o desejá-la, pois, afinal, a mãe não é, em si mesma, o objeto mais desejável. Se tudo se organiza em torno do desejo pela mãe, se devemos preferir que a mulher, seja outra que não a mãe, que quer dizer isso, senão que um mandamento se introduz na própria estrutura do desejo?  Numa palavra, desejamos no mandamento. O mito do Édipo significa que o desejo do pai é o que cria a lei” (Lacan, p.120). Então no sadismo está uma estrutura perversa, onde a lei simbólica é subvertida, ignorada, e a angústia gerada precisa ser descarregada, pois o ser faltante “não existe”, precisa ser reconstruído. Se reconhecer como objeto do próprio desejo é masoquismo e sair de cena, ficar aquém dela, olhar o outro em sua falta é encontrar a própria falta.

O sujeito que odeia afasta-se da lei, da moralidade, pois não elabora o complexo de Édipo, o início do desejo ao nascer e no percurso de sua primeira infância. Então o prazer pelo próprio sofrimento é o “primeiro” instante desse ódio, que é revivido durante a vida. Odiar a si próprio é o começo do “resto” de si, que evolui nas mágoas, ressentimentos, como forma de fazer sofrer-se, como um castigo, que evolui para as “ações pecaminosas, que devem então ser expiadas pelas censuras da consciência sádica”. Se o sujeito retorna o sadismo para ele é uma intensificação do masoquismo. Mas não exclui que ao mesmo tempo “escolha” o outro como objeto do seu sadismo, seja como forma de masoquismo, seja por um ato perverso de ódio, como forma de drenar o próprio ódio. Não é possível falar de sadismo sem seu “contraponto” o masoquismo. Em determinadas circunstancias estão relacionados, independente se a vítima e o algoz estão no mesmo sujeito. Então a questão que se coloca é como sair desse circuito negativo e patológico. Essa é uma questão, cuja “resposta”, está na subjetividade do próprio sujeito. Surge um cansaço do sofrimento, um esgotamento do sofrer que alimentará seus recursos psíquicos e seu processo de autoconhecimento. É necessário que o sujeito se implique consigo mesmo, se interrogue. Assim surgirá uma revolta, uma projeção da própria culpa, uma passagem de algoz a vítima, um remorso e um sentimento de culpa, que é o início da entrada na lei, a necessidade do próprio resgate e da reparação. Então começará a surgir o senso ético, moral e começa as renuncias instituais primitivas.
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

26 de novembro de 2016

Você invisível


Pensamento que voa...
nessa imensa saudade,
que faz doer alma,
uma dor sem palavras,
saudade sem palavras,
sentimentos intraduzíveis...
amor intraduzível,
além das palavras.
Não há palavras!

Myriam’aya

23 de novembro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - o sadismo como expressão do ódio

Imagem obvious magazine


5. O Sadismo como expressão do ódio

Como o sentimento de culpa e o remorso não habita o sadismo porque esse é a negação do ser encarnado, porque para que ele se realize é necessário “apoderar-se” do outro e negá-lo enquanto sujeito desejante. Em uma estrutura psíquica em que o sadismo ocupa grandes marcas, há que realizar um esforço para possui o outro pela violência; e aqui podemos entender violência em todos os significantes possíveis: violência psicológica, (ameaças, humilhações, intimidações, mentiras, manipulações e dissimulações subjetivas, traições, trapaças, indiferenças, as fantasias de que o outro corresponde a seu desejo sádico, etc.), violência ligada a estruturas de poder (arrogância, vaidade, egoísmo) e violência física. É assim que o sádico despe o sujeito para esconder-se de si mesmo, pois na contrapartida desses significantes, há um ser que se apresenta como fazendo parte da lei, dócil e gentil, e muitas vezes se colocando como espiritualizado. “Quanto ao tipo de encarnação que o sadismo gostaria de realizar, trata-se daquilo que chamamos de Obsceno” (Sartre, p.496). Como o sádico alimenta a ilusão que domina e conhece a subjetividade de seu objeto, a grande armadilha que ele se coloca é a imprevisibilidade do psíquico do outro, sua angústia é descobrir um outro inacessível. Então desconstruir, torturar o outro, torná-lo desequilibrado, de caráter duvidoso, obseno, passional é parte da estratégia sádica para dominá-lo de forma privada e pública. “o que o sádico busca com tal tenacidade, o que almeja amassar com as mãos e submeter com os punhos é a liberdade do Outro: ela está ai nesta carne; ela é carne, posto que haja uma facticidade do Outro; portanto, é da liberdade que o sádico tenta apropriar-se” (Sartre, p.500). Para isso é necessário a dor, psíquico-física, como prova da servidão da liberdade do Outro, para que este se humilhe, renegue a si mesmo, satisfazendo a vontade de poder do sádico. A vontade de poder é o sangue que o alimenta.

A vontade de poder, de dominar é uma forma de gozo, que na passagem ao ato mascara o ser faltante, "desprovido" de falo. É dessa insegurança da energia fálica, que Sartre irá dizer que “o sádico compraz-se em obter uma regeneração pela tortura... Por isso o momento do prazer, para o verdugo, é aquele em que a vitima renega ou humilha a si mesma” (Sartre, p.500). Então para o sádico a vítima humilhar-se e pedir perdão, esvazia-o, mas se a vítima resiste é mais prazeroso. Como o sentido de poder faz com que ele se sinta com todo o tempo do mundo “é calmo, não tem pressa, dispõe de seus instrumentos como um técnico, testa uns atrás dos outros, tal como chaveiro testa diversas chaves em uma fechadura; saboreia esta situação ambígua e contraditória: de um lado, com efeito, faz o papel de quem, no cerne do determinismo universal, dispõe pacientemente dos meios com vistas a um fim que será alcançado automaticamente – tal como a fechadura se abrirá automaticamente quando o chaveiro encontrar a chave “certa”; por outro lado esse fim predeterminado só pode ser realizado com a livre e total adesão do Outro” (Sartre, p.501). E assim, ele sem o saber do resultado final, pois sua vaidade, arrogância e vontade de poder o entorpece, ele não se dá conta, que a subjetividade do outro é livre e pode ser detentora de uma autonomia e resiliência, que o percebe, sem se deixar perceber. Não é possível um sadismo fora do campo da perversão, porque o sadismo como a perversão se compraz no sofrimento do outro. Pode-se até dizer que o sadismo é uma das expressões, um sintoma da perversão. A questão é que as estruturas psíquicas alimentam-se de afetos. E o ódio enquanto afeto é alimentado pelo sadismo. Quem odeia, precisa subjugar. E pelo ódio só há um caminho para subjugar: o sadismo. Como esses significantes compõe a estrutura perversa, há que possuir recursos psíquicos para colocá-los sobre um véu, que possibilite ignorar a lei. 

O sadismo faz parte do desejo perverso, pelo reverso do seu fracasso. Sempre que se aborda a questão do ódio pela representação do sadismo, aparece o seu contraponto que se afasta da passagem ao ato do perverso, mas que de alguma forma o constitui, que é o masoquismo; algoz e vítima, senhor e escravo, são uma dualidade dialética, que pode confluir ou não. Se conflui vamos ter o sadomasoquismo, se não temos estruturas diferentes no seu reverso que é a neurose. “Quanto mais o sádico se obstina em tratar o Outro como instrumento, mais esta liberdade lhe escapa” (Sartre, P.502). O nada ao qual o sádico se depara é quando ele olha ou fala com sua “vitima” e percebe que está alienado pela sua “vitima”, não tem como agir sobre a liberdade do outro, e que por mais que a humilhe, ele não tem como apreender sua liberdade. A base da relação com o outro é a relação consigo próprio e a história do sujeito. Se essa relação é de amor-desejo, está inserida na lei, se é de ódio-sadismo, ignora a lei.
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

18 de novembro de 2016

"O Caminho do Homem Sagrado é fazer e não disputar"


Palavras confiáveis não são belas
Palavras belas não são confiáveis
Quem sabe não é abrangente
Quem é abrangente não sabe
Quem é bom não discute
Quem discute não é bom
O Homem Sagrado não acumula
Quanto mais faz para os homens, mais tem
Quanto mais dá aos homens, mais aumenta
O Caminho do Céu é favorecer e não prejudicar
O Caminho do Homem Sagrado é fazer e não disputar

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

11 de novembro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - Masoquismo e Sadismo



4. Masoquismo e Sadismo

O superego reteve características essenciais das pessoas introjetadas — a sua força, sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já disse noutro lugar, é facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que ocorre juntamente com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O superego — a consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo”.

Ao pensar no psiquismo como uma estrutura, uma arquitetura psíquica, que vai se transformando ao longo do tempo, através dos representantes e significantes, há que pensarmos que as estruturas não são absolutas, “puras”, sem intermediações, traços de uma em outra. Então pensar o ódio como um afeto que se expressa pelo masoquismo e/ou pelo sadismo, é pensar no masoquismo como uma “elaboração” do sadismo, é pensar nele como constitucional e primário, "invertendo" o “instinto de morte”. É uma construção circunstancial, que pode ter uma duração no tempo do inconsciente. Enquanto primário está vinculado ao instinto do prazer e do desprazer e por sua vez, há que ser modulado por uma constância, que mantenha o prazer, para que o desprazer não seja “registrado” como prazer, pois, então poderá delinear-se uma passagem do masoquismo ao sadismo, da neurose a perversão. No masoquismo a fantasia, o sentimento de culpa vão está presente na consciência. Se o psiquismo busca o princípio do prazer, da satisfação, nem sempre irá encontrá-lo, então como forma de sobrevivência psíquica há que sentir prazer pelo próprio sofrimento, o que é o masoquismo, uma vez que a realidade não lhe deixa alternativas. Então “a existência de uma tendência masoquista na vida instintual dos seres humanos pode”, ser um recurso que diz respeito a economia psíquica para sobreviver.

Há que ressaltar que “os processos mentais são governados pelo princípio de prazer de modo tal que o seu primeiro objetivo é a evitação do desprazer e a obtenção do prazer”, mas, quando o desprazer torna-se a forma de existência, “o princípio do prazer é paralisado” e o voyeurismo sádico torna-se a primeira forma de prazer pela dor do outro, sendo esse outro qualquer ser vivo. “é como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga”. O que está em jogo são o instinto de morte e os instintos de vida, embora o instinto do prazer seja um vigia e visa a estabilidade. O que todos almejamos é a paz. Nesse sentido toda a caminhada do homem na terra visa a elevação intelectual, psíquica, moral e espiritual. A estabilidade psíquica é o primeiro plano de construção, em que se equilibram o princípio do prazer e do desprazer no sentido de preservação da vida em sua forma mais saudável. Mesmo as inquietações próprias da vida cotidiana, devem estar reguladas nessa estabilidade. O que requer uma elaboração constante do desprazer. No mecanismo psíquico há “tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos”; assim o prazer e o desprazer estão também vinculados a aumento e diminuição.

Há que refletirmos sobre a construção do ritmo, da “sequencia temporal de mudanças”, pelas quais o sujeito se constrói nas referências iniciais que fazem parte de sua vida. Quando Freud pensou o Nirvana como a expressão do instinto de morte, significa que o sentimento de prazer, de paz, de quietude só seria alcançado com a morte, o que não é de todo inverídica, pois estaria fora da influência do mundo material. Reduzir o masoquismo-sadismo no paradigma da quantidade e qualidade é pensar em um limiar de onde termina, começa e adianta o outro, quando apesar de haver indícios de ligação, esta não pode ser tida, como linear e consequente, apesar dos traços que se cruzam, sempre na “aquiescência temporária ao desprazer”. Nesse sentido o princípio do prazer deve ser o vigia para uma vida saudável. Está-se longe de compreender a relação masoquismo-sadismo em sua obscuridade, sob a ótica das circunstancias psíquicas estruturais e favorecedoras. O masoquismo mesmo, sem um viés perverso, e seja qual for sua fonte formadora, desencadeia o masoquismo moral. Na fonte de um masoquismo é possível encontrar um percurso de grandes e continuados sofrimentos, que de certa forma, assumiram a forma de prazer, como defesa, e que ao longo do “tempo” foi-se constituindo de forma estrutural. Se o que “antecede” é uma estrutura no campo da neurose pode-se caminhar para o sentimento de culpa. Se o que “antecede” é uma estrutura no campo da perversão “o conteúdo manifesto é de ser amordaçado, amarrado, dolorosamente espancado, açoitado, de alguma maneira maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado e aviltado”, é associado e executado como mutilações. Pode-se dizer que as torturas masoquistas são em um primeiro plano produzidas pelo próprio sujeito, mas em seu percurso estrutural pode transcorrer do masoquismo ao sadismo, com as crueldades produzidas por um outro, que pode ser o seu reverso, ou seja, o próprio sujeito. O sentimento de culpa é a barreira que o masoquismo terá que superar, curar, em uma estrutura neurótica. Podemos dizer que é seu “superego”. Superar é elaborar, curar. Senão o que fica é uma estrutura perversa ao ignorar a lei em relação a si mesmo.

A luta entre o instinto de morte e o instinto de vida, é a luta da sanidade, mas a sanidade não é um estado inorgânico, ao contrário é o instinto de vida pleno, em suas faculdades mentais, a serem desenvolvidas. Manejar o instinto do desprazer sem desvirtuá-lo, é a função do instinto do prazer. E manejar o instinto do desprazer sem externá-lo é não fazer a passagem pelo sadismo. Nessa passagem não há espaço para o purismo, há que ser gradual, pois envolve o instinto de vida e de morte, quer faça a conversão ou passagem ao ato. “Uma pequena falta de exatidão” e estaremos diante do sadismo primário, que “é idêntico ao masoquismo. Após sua parte principal ter sido transposta para fora, para os objetos, dentro resta como um resíduo seu masoquismo”. O contorno que envolve o masoquismo diz respeito a relação com o Outro. Dessa forma o masoquismo dirigido para fora é o sadismo. Se for regredido retorna ao próprio sujeito como masoquismo secundário, que se soma ao masoquismo original. O próprio sofrimento, no masoquismo, possui diversos representantes patológicos, que estão vinculados ao princípio do prazer, que se distancia do próprio sentimento de prazer, possibilitando o surgimento do sentimento de culpa e do remorso. Embora o sentimento de culpa pode vir a ser “o mais poderoso bastião do indivíduo no lucro (geralmente composto) que aufere da doença — na soma de forças que lutam contra o restabelecimento e se recusam a ceder seu estado de enfermidade”. É o sofrimento vivenciado nas neuroses, como uma forma de manter “um determinado grau de sofrimento”, por uma necessidade de autopunição. Ficamos por aqui com a reflexão: https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2015/09/anotacoes-sobre-culpa.html
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

7 de novembro de 2016

Poesia - Alma Luz


Alma Luz
Minha alma tem o peso da luz
Tem o peso da música
Tem o peso da palavra nunca dita,
Prestes quem sabe a ser dita
Tem o peso de uma lembrança
Tem o peso de uma saudade
Tem o peso de um olhar
Tesa como pesa uma ausência
e a lágrima que não chorou
Tem o imaterial peso de uma solidão
no meio de outros.

Clarice Lispector

3 de novembro de 2016

A Contextura Psíquica do ódio - A indiferença como expressão do ódio



3. A indiferença como expressão do ódio

Para odiar há que negar o outro, ser indiferente a esse outro, negar sua subjetividade, olhar para ele como objeto material, de passagem ao ato. Se o masoquismo é um ancoradouro do prazer, na relação do sujeito consigo próprio e com o outro, a indiferença é a ponte para o sadismo, como expressão do ódio. Mas primeiro há que “olhar o olhar do outro”, “mas um olhar não pode ser olhado: desde que olho em direção ao olhar, este se desvanece e não vejo mais do que olhos” (Sartre, p. 473). O outro ao desvanecer, tudo se desmorona, pois o que “resta” é o objeto. A indiferença para com o outro é construir a própria subjetividade desmoronando, desconstruindo a subjetividade do outro. Como essa desconstrução não é possível, mantendo a própria subjetividade no campo da neurose, afasta-se, portanto, desta e aproxima-se da perversão. Estabelecer com o outro uma relação de objeto, requer a manifestação dos instintos primários no corpo, ou seja, o sujeito faz a passagem de objeto de si próprio, o que vai além do narcisismo. 

Para desejar o corpo do outro como puro objeto material é preciso que a relação com o próprio corpo seja objetal. Assim como pode a subjetividade revelar-se, se o desejo diz respeito a matéria? O desejo só pode posicionar-se a si próprio como objeto material a se reelaborar pela sublimação. O desejo embora possa remeter-se a um corpo, mas o fazer-se presente, dar-se por uma imagem simbólica de representatividade do outro. A consciência é desejo de vida. Em que tempo está essa vida, diz respeito ao transcendente. É na relação especular “na reação primordial ao olhar do Outro, com efeito, constituo-me como olhar. Mas, se olho o olhar, a fim de defender-me contra a liberdade do Outro e de transcendê-la como liberdade, a liberdade e o olhar do Outro desmoronam: vejo olhos, vejo um ser-no-meio-do-mundo. Daí por diante o Outro escapa-me: queria agir sobre sua liberdade, apropriar-me dela, ou, ao menos fazer-me reconhecido como liberdade pela liberdade do outro, mas esta liberdade está morta, já não está de forma alguma no mundo em que encontro o Outro-objeto, pois sua característica é ser transcendente ao mundo. Por certo, posso apoderar-me do Outro, agarrá-lo, sacudi-lo; caso disponha de poder, posso constrangê-lo a tais ou quais atos, tais ou quais palavras” (Sartre, p.488); é como abraçar alguém que fugiu deixando seu casaco.

O ódio surge de uma ferida na alma. Nasce da relação sujeito-objeto, na contextura da desconstrução do outro objeto, do narcisismo, vaidade, arrogância. Há uma permeabilidade sujeito-objeto, senhor x escravo, próprio das relações de poder, da escravidão que cada sujeito se insere. Então há um sujeito que “não se conhece”, não conhece seu lugar, sua função, seu destino, sua falta, sua incompletude. O sujeito não possui outro recurso para dar a seu destino, sua mágoa, seu ressentimento e sua própria desagregação, então uma vez objeto, reproduz essa relação, supondo-se sujeito pelo sadismo. Nesse contexto a apreensão do outro é a apreensão do outro enquanto objeto, para prestar contas da sua transcendência, o que não é possível, pois por ser sujeito, escapa com sua transcendência. Então não é possível ter a consciência do que se busca. O desejo está turvado pelo ódio, o que se supõe tocar, segurar; escapa! Se é possível supor uma origem para o sadismo, aqui está. O sadismo é uma obstinação porque se distancia da essência, assume um compromisso, sem saber que valor isso possui. O sádico foge de sua factibilidade, “faz experiência de si mesmo frente ao outro enquanto pura transcendência; tem horror a turvação para si mesmo e considera-a um estado humilhante”; esse estado humilhante, que nasceu de sua própria subjugação a um outro.
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado) 

24 de outubro de 2016

Poesia - O espelho


Eis o homem perdido em mil clonagens
no infinito mar das perspectivas,
as coisas todas virtualmente vivas
só no fluir contínuo das imagens.
És o ser que não é, o que se nega
em perene devir e rodopio,
a jogar com a luz o desafio
de aparecer tão logo cesse a treva.
Talvez sejas o duplo que se oculta
amargando no fundo da consciência
numa contradição que sempre avulta:
o desejo perene de mudança
mas não, como a do espelho, com carência
do próprio ser, por nunca ter lembrança.

Miguel Reale

21 de outubro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - Ressentimento e Mágoa



2. O Ressentimento e Mágoa no ódio

No ressentimento e na mágoa a relação com o outro é permeada por profundas contradições, desenganos, expectativas, agressões, traições, feridas, maus tratos psicológico e/ou físicos, morte, que sangram durante muito tempo e aquele sentimento de amor, ilusão que poderia florescer, sem a resiliência, transforma-se, em ressentimento, mágoa e ódio. E esse ódio transforma-se na “única forma de conviver” com as feridas. O amor fracassa, o desejo surge da morte do outro. Mas o outro é um outro da liberdade, inapreensível, incognoscível, só possível ser apreendido pelo amor. “O Outro é por princípio; inapreensível: foge de mim quando o busco e me possui quando dele fujo. Mesmo se quisesse agir segundo os preceitos da moral Kantiana, tomando como fim incondicional a liberdade do Outro, esta liberdade iria converter-se em transcendência-transcendida pelo simples fato de ter sido por mim constituída como fim; e, por outro lado, eu só poderia agir em seu benefício utilizando o Outro-objeto como instrumento para realizar esta liberdade. Com efeito, será necessário que eu capte o Outro em situação como um objeto-instrumento; e meu único poder, então, será o de modificar a situação com relação ao Outro e o Outro com relação à situação” (Sartre, p.507). A questão é que uma moral “permissiva”, que subverte a lei simbólica, a “tolerância”, significa menos respeito a liberdade do outro, o que não significa privar o sujeito da livre possibilidade de resistência, da perseverança. É sempre diante do outro que se é culpado. Culpado porque se está refletido no olhar do outro, está-se implicado no outro.

Reparar a culpa, os erros, os equívocos, as injustiças, as agressões, é tarefa árdua, difícil, que exige muita renuncia e autoperdão. Implica em uma mudança de posição em relação a si próprio e em relação ao outro, ou seja, tarefa, que passa por uma reestruturação egóica. Perseguir a morte do outro disfarçada de um socorro, como uma “solução”, para livrar-se desse outro. é uma forma de “livrar-se” do remorso, da culpa e ao mesmo tempo auto mutilar-se com a morte do outro pela mesma culpa e remorso. Essa relação com o outro, possui uma história que transcende o tempo, passou por muitas vicissitudes, e o que “resta” é uma inutilidade ao perseguir a morte do outro. “Esta livre determinação chama-se ódio”. É realizar um mundo onde não exista o outro. A “escolha” pelo ódio é a “escolha” de uma relação consigo próprio pelo ódio, porque para odiar o outro é preciso, que o sujeito sinta ódio por si próprio primeiro. Essa relação consigo próprio, única, circunstancialmente possível, estende-se ao outro. É uma relação pelo negativo, porque o ódio é o negativo, é a relação da “nadificação”. “Aquele que odeia projeta não mais ser objeto de forma alguma; e a ira apresenta-se como um posicionamento absoluto da liberdade do Para-si (da relação) frente ao outro” (Sartre, p.509). A ira rebaixa o objeto odiado, como uma forma de sentir-se “livre” na relação com o outro. Ou seja, um autoengano, pelo qual “pagará” em um tempo não cronológico, um autopreço, que é o remorso e a culpa, pois não existe liberdade no negativo, que é o ódio. O sujeito que odeia se vê, diante do impedimento de compreender a transcendência do outro, que a liberdade do amor. Então só lhe resta destruir esse outro. Se essa morte do outro ocorre no real, ele “conforta-se”, pois a morte no real, acomoda o sujeito em seu ódio, na contextura de negação da lei. Se a morte ocorre no plano simbólico, o sujeito terá diante de si um conflito com seu ódio, ao ser deslocado ou encontrado outros representantes.

Esse gozo perverso do ódio implica em ignorar a transcendência do outro, sua totalidade psíquica. O ódio é de um psíquico revelado ou não. Nem sempre o sujeito sabe a essência de seu ódio. Ele conhece seus representantes. Lembrando que o ódio é uma construção no tempo, mas não em um tempo cronológico, é o tempo da alma, do psiquismo, não é o ódio do aqui e agora.  Nessa construção está uma ferida. O que reveste essa ferida narcísica é o orgulho, a arrogância, a vaidade, a inveja, a vontade de poder, o prazer pelo sofrimento do Outro, que no reverso é o prazer pelo próprio sofrimento. A cura pertence a uma eternidade, fora do tempo cronológico. Se o que reveste essa ferida é um sentimento de humilhação, de dor física e psicológica, de solidão, de abandono, de um desejo não “resolvido”, é possível pensar em uma diferenciação de tempo. Não esqueçamos que a semente do ódio é a mágoa, o ressentimento, a ira, a indiferença. Para quem odeia “há “algo” a ser destruído para que” o sujeito se “liberte”. O ódio é um sentimento sombrio, obscuro, ou seja, um sentimento que visa a supressão de um outro e que, enquanto projeto, projeta-se conscientemente contra a desaprovação dos outros. Desaprovo o ódio que o outro professa em relação a algum outro; tal ódio me perturba, e busco suprimi-lo, porque, embora não se dirija explicitamente a mim, sei que me concerne e se realiza contra mim”(Sartre, p.510). Não há conforto psíquico para aquele que odeia. A inquietude de “ter que suprimir outras consciências”, já é o seu fracasso, porque ainda que pudesse abolir o outro, esse outro foi, existiu, existe em sua transcendência. O que resta então é um desespero de “ser um nada”. 
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

19 de outubro de 2016

Aproximação é a imagem da terra acima do lago


...a primavera não dura para sempre.

Enfrentando o mal antes de ele se manifestar, antes mesmo de seus primeiros sinais, é possível dominá-lo.

Ao alto, a terra faz fronteira com o lago.

Assim como o lago é inesgotável em sua profundidade, o sábio é inesgotável em sua disposição de instruir os homens. Assim como a terra é ilimitadamente vasta, sustentando e protegendo todas as criaturas, assim também o sábio sustenta e protege todos os homens sem impor limites nem excluir qualquer parte da humanidade.

Quando o estímulo à aproximação vem do alto e o homem possui em seu interior a força e a integridade que tornam prescindíveis as advertências, a boa fortuna se seguirá. Nem deve o futuro ser causa de qualquer preocupação. Ele está consciente de que tudo na terra é transitório e que a cada ascensão segue-se um declínio.

Um sábio, que deixou para trás o mundo, que interiormente já se retirou da vida, pode, em determinadas circunstâncias, decidir voltar mais uma vez a este mundo, aproximando-se dos homens. Isso significa grande boa fortuna para os homens a quem ele instrui e ajuda. Mas também para ele, este ato de magnânima humildade não implica culpa.
I CHING – O livro das mutações – Richard Wilhelm

16 de outubro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - O surgimento do “outro”


A Contextura psíquica do ódio 

“Quando o amor acenar, siga-o ainda que por caminhos ásperos e íngremes. Debulha-o até deixá-lo nu. Transforma-o, livrando-o de sua palha. Tritura-o, até torná-lo branco. Amassa-o, até deixá-lo macio; e, então, submete ao fogo para que se transforme em pão para alimentar o corpo e o coração!” Khalil Gibran

O Caminho é o da Paz... É tempo de amar... Esse é um artigo longo, segmentado em seis capítulos e uma síntese: O surgimento do “outro”, O Ressentimento e Mágoa no ódio, A indiferença como expressão do ódio, Masoquismo e Sadismo, O Sadismo como expressão do ódio, O desejo e o ódio e a “Síntese”. Um tema complexo, que diz respeito a civilização atual de forma contundente. É o inicio de uma reflexão que, por muitos séculos, acompanhará a humanidade. É um artigo que ao falar da arquitetura do ódio, reflete em como exterminá-lo do planeta. Tarefa de muitos séculos de evolução no porvir da humanidade. Como o amor vence e vencerá sempre, é preciso desconstruir esse inimigo humano, essa escravidão, que intoxica milhões de vidas e as destrói. Então haverá um tempo que “o amor esfriará do coração dos homens”. A reflexão sobre um sentimento como o ódio, que sempre esteve na história da humanidade, e é constitutiva de forma primitiva, no sujeito, em sua subjetividade, é complexa e por certo há muito que compreender e estudar. Muitos são os enigmas das provações, pelas quais a existência humana se realiza. Para além das importantes leituras sociais, antropológicas sobre a raça humana, temos que pensar no que há de mais complexo em sua constituição, ou seja, seu psiquismo.

1. O surgimento do “Outro”

Na contextura do ódio está um sujeito e um outro, como objeto, que sofre. E esse outro, é colocado no inverso do objeto de desejo. Então o primeiro passo, é pensar a superação dessa contextura através do sentimento de culpa, pois esse possui um lugar importante nas reelaborações do sujeito, representando não só a consciência de algo contrário à lei, como uma tensão entre o ego e o superego. “O ego reage com sentimentos de ansiedade à percepção de que não esteve à altura das exigências feitas por seu ideal, ou superego”. O ego esse conciliador do id, do superego e do consciente, representa o inconsciente e o consciente. Em uma primeira instancia pode-se falar de um masoquismo inconsciente, mas no sadismo, há sempre um saber intuitivo de que o “outro sofre”, pois essa é a fonte do prazer do sádico; comprazer-se no sofrimento do outro. A relação com o outro é mediada pelo corpo, há um corpo, enquanto materialização do significante, em ação.

A relação com o outro é comandada pelas atitudes, com relação ao que, se é para o outro. “E, como a existência do outro revela-me o ser que sou, sem que eu possa apropriar-me desse ser ou sequer concebê-lo, assim o outro me olha e como tal, detém o segredo de meu ser e sabe o que sou”...(Sartre, p. 452). A atitude em relação ao outro, é a experiência do outro, ao mesmo tempo em que se é, a experiência do outro, o que remete ao “ser presença”, “presença” que pode necessariamente implicar em um corpo. A relação com o outro pressupõe uma dialética, que para consumar na morte do outro, deve sair do masoquismo ao sadismo, que alimenta o ódio.

A relação com o outro não é linear, a diferença está na quantidade, qualidade dos impulsos masoquistas. Cada sujeito “detém o segredo do que se é”. Nessa suposta condição “sabe” porque “tem que fazer-se sofrer”, o que é um mínimo de consciência ontológica, que reivindicará a responsabilidade pelo que se é, e o inerente projeto de recuperação, que diz respeito a liberdade de estar saudável.  Assim a insegurança de se diluir pela existência do outro e o outro diluir-se em sua existência, é uma contingência superável e deve ser um ideal realizável na relação com o outro. “Porque iria eu querer apropriar-me do outro não fosse precisamente na medida que o Outro faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação: é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser” (Sartre, p. 457-458). No amor a liberdade enquanto liberdade é deixar-se ser. O amante não deve exigir ser a causa, mas sim como diz Sartre “a ocasião única e privilegiada”. Então se não há uma relação senhor x escravo, próprio da neurose obsessiva em suas diversas variantes, há uma subjetividade, uma “escolha absoluta”, própria de almas similares. O sujeito é linguagem, enquanto pensamento, fala e representações, e essas sempre escaparão. Assim é difícil saber se o que se deseja significar é aquilo que supõe revelar como significante, o que só seria possível pela telepatia.

O masoquismo, esse sofrimento “auto-imposto”, é colocar-se frente a um abismo, pois a subjetividade do outro é um enigma. “O masoquismo, tal como o sadismo, é a assunção de culpabilidade. Sou culpado, com efeito, pelo simples fato de que sou objeto. Culpado frente a mim mesmo, posto que consinto em minha alienação absoluta; culpado frente ao outro, pois dou-lhe a ocasião de ser culpado, ou seja, de abortar radicalmente minha liberdade enquanto tal” (Sartre, 471). Assim o fracasso lhe é inerente, pois o submeter-se ao próprio sofrimento como princípio de prazer, é um “vício” e o vício é um fracasso, ou seja, os recursos psíquicos saudáveis fracassaram. Mas buscar o próprio fracasso faz parte do masoquismo. Continua em: https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2016/10/a-contextura-psiquica-do-odio_21.html
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)