23 de fevereiro de 2013

Lembranças e Paranoia - Considerações I

A relação entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia

Considerações I

 Quando começamos este trabalho, colocando a questão da memória em primeiro plano em função da leitura da carta 52 de Freud, não imaginávamos que ela poderia ser o norte de todo o trabalho, e que iriamos nos deparar com a mesma carta no capitulo XI do seminário 3 de Jacques Lacan. Repetimos então a leitura que Lacan (2008, p.181) faz da carta 52 “há os desejos que não se extinguem jamais, que continuam a circular na memória e que fazem com que, o ser humano recomece indefinidamente as mesmas experiências dolorosas, as coisas se conectaram na memória de maneira tal que persistem no inconsciente”.  Nesta e em todas as cartas de Freud estão as bases da construção psicanalítica. Mas é surpreendente que em uma única carta ele tenha esboçado a estrutura da memória, das lembranças, do recalque e da paranoia, dentre outras estruturas.

Quando Freud pensa a topografia mental ele o faz a luz das experiências perceptivas externas e internas. Suas interrogações surgem quando se depara com o enigma: Os processos internos (pensamentos, sentimentos) avançam gerando a consciência ou a consciência abre caminho até eles? E assim ele coloca a terceira alternativa: o inconsciente é efetuado em algum material que permanece desconhecido, enquanto o pré-consciente é colocado em vinculação com representações verbais, que são resíduos de lembranças.

Não podemos deixar de considerar que existe uma história filogenética, que habita cada um de nós e diz respeito também a cultura. O desenvolvimento de cada pessoa é como nos diz Freud (1900-1901, p.578) a “recapitulação abreviada” da história humana através das circunstâncias e provações ao longo da vida que revelam seja como repetição, alucinação das antiguidades anímicas dos mais antigos e obscuros recantos da vida humana.

O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, “em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais”. (Freud 1900-1901 p.637). O que podemos relembrar e reelaborar do recalcado, é que nos traços mnêmicos que diz respeito a psicose paranoica o ego é arrastado para longe da realidade, e ao mesmo tempo tentaria reparar o dano causado e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade às expensas do id, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, através do delírio e da alucinação. Serve ao desejo de poder do id, e a fuga, da realidade é sucedida por uma fase de remodelamento do ego. A paranoia repudia e tenta substituir, transformar a realidade sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com a própria realidade, ou seja, sobre os traços de memória, as ideias e os julgamentos continuamente enriquecida e alterada por novas percepções, ao longo do tempo. Mas não é só com o vivido que o sujeito tem que se haver, há que também conseguir para si próprio percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, o que se dá através da alucinação. É claro que existe aflições, sofrimento nas alucinações e nos delírios, pelas forças conflitantes em jogo, pois o fragmento de realidade rejeitado  se impõe à mente.

Que tudo o que é produzido pelas experiências remotas da infância,  através de vivências, ou do imaginário para tornar-se consciente ligam-se a novas percepções externas presentes, é algo que a vastidão do inconsciente retém como lembranças que voltará à consciência. Mas as lembranças residuais estão contidas próximas ao consciente, e sua energia pode estender-se do pré-consciente para o consciente. Quando uma lembrança é revivida a sua energia permanece na lembrança, enquanto que uma alucinação que não é distinguível de uma percepção pode surgir quando a energia se transfere inteiramente para o pré-consciente, sem se estender pelas lembranças. É certo que as vivências infantis barradas pelo inconsciente, tidas como desprazeirosas, no transcurso do desenvolvimento, há um aumento da necessidade de liberação, de descarga, que ocorrerá através da construção de vínculos, representações, significantes, para se tornarem conscientes. Com o recalque e o que Lacan chama de nome-do-pai, ou seja, a lei, estas lembranças aparecem na paranoia, como compulsão, alucinação, delírio.

Poderíamos pensar que quanto mais cedo as vivencias infantis forem barradas pelo superego estarão “a salvo” de um retorno deslocado da realidade. Mas se isso não é possível os pensamentos inconscientes e lembranças recalcadas são trazidos à consciência superando a resistência, os pensamentos que emergem do inconsciente são ouvidos então interiormente ou alucinados da mesma forma que as vozes. As alucinações (Lacan 2008, p. 168), seja nos “seus contrastes recíprocos, nas oposições complementares fazem parte da organização subjetiva sendo necessário segui-las em sua sucessão no tempo”, são fragmentos de lembranças, reproduções de uma impressão real, que se reproduzem por causa de um grande interesse ligado a elas, ou como uma (Lacan 2008, p.168) “realidade que se apresenta como significante”. Que o recalcado aqui habita disso não temos dúvida, da mesma forma que retorna. Os sintomas devem ser descritos como sintomas de retorno do recalcado. Na representação delirante há um conteúdo mnêmico. O retorno do recalcado em imagens visuais - as alucinações mnêmicas da paranoia - sofrem uma distorção, uma imagem nova, semelhante, toma o lugar da que foi recalcada. As autoacusações recalcadas retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta, que ficam sujeitos a uma censura, que os leva a serem substituídos por outras representações associadas, ou são ocultados por um modo de expressão indefinido, sendo relacionados com experiências recentes que nada mais são do que experiências análogas às antigas.

Encontramos na paranoia uma fonte para a formação de sintomas, que são as representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso, os sintomas do retorno do recalcado, que fazem exigências à atividade de pensamento do ego, até que possam ser aceitas sem contradição. Como não são influenciáveis, o ego precisa adaptar-se a elas, numa formação delirante combinatória de delírios interpretativos que terminam por uma alteração do ego. Assim as lembranças que retornam (Freud 1896, p.274) “sofrem uma distorção ao serem substituídas por imagens análogas, extraídas do momento presente. As vozes lembram a autocensura, distorcidas a ponto de se tornarem indefinidas a se transformarem em ameaças”; configurando um estado de desconfiança. Os sintomas de compromisso do retorno do recalque e substituição subsequentes de lembranças que  contradizem a alteração do ego revela-se pelos sintomas do retorno do recalcado.

A lembrança está na ordem simbólica, onde os registros são distintos, assim não é possível saber o que está em primeiro ou segundo plano e porque esta ou aquela vem à lembrança e seu valor. São as percepções, as representações que emergem enquanto realidade, de uma significação que não foi simbolizada. Uma significação que é rejeitada e reaparece no fenômeno paranoico, como eus camuflados, refratados, só possível de acessar pelo registro da fala. A palavra é assim um acordo, um entendimento que é preciso reconectar com as marcas mnêmicas. Como falamos acima o que ficou de fora do recalque, que não foi incluído no recalque, é o destino que cada sujeito dá ao Nome-do-pai, à castração, ao pai simbólico, a lei. Diante da foraclusão o que retorna é o que fica de fora da lei. Assim o que fica de fora nos dá a imagem de um buraco, ao qual Freud irá falar de “fueros”, ou seja uma falha, uma ruptura que é preenchida pelo que Lacan (2008, p.59) fala “peça trazida pela fantasia psicótica”, em que o recalque e o retorno do recalcado são uma só e mesma coisa, expressa na linguagem. Então o que se trata é da ordem de um saber. O sujeito que alucina e/ou delira sabe do que se trata. O importante aqui é citar que o presidente Schreber em suas memórias, capitulo III, tanto sabia, das implicações dos fatos e lembranças de sua infância, relembrado por Lacan (2008, p.93) que Schreber “comportava observações concernentes à sua família, o que nos teria provavelmente esclarecido sobre seu delírio inaugural em relação a seu pai ou a irmão, ou a alguém entre seus parentes, e sobre o que se chama comumente os elementos significativos transferenciais”.

 A questão é que memória, lembranças, recalque, lei, simbolização e paranoia há que lutar ao lado do id, do superego e do ego e a intervenção cabe a todas as instancias do psiquismo, porque o que é rejeitado do interior reaparece no exterior, é quase uma fórmula. Se não é possível simbolizar, fica de fora, tem que reaparecer, pois pertence ao sujeito e aqui devemos lembrar da supressão primitiva das lembranças. Como no psiquismo acontece toda espécie de acidentes, Lacan nos diz que não há garantia de que a supressão primitiva tenha sido efetivada de maneira apropriada e que nada podemos saber sobre isso, pois se situa além de toda simbolização.

É com o que resta que cada um compõe seu mundo. Se na paranoia a alucinação é o retorno do que não foi simbolizado e o que não foi simbolizado diz respeito às “escolhas” sexuais infantis, ao destino que se dá a lei, o que ocorre é a fragmentação do eu (p.119), pois no que vai sendo revelado pela alucinação e/ou delírio há a dificuldade de encaixar, amarrar (p.143). É o sentido do(s) trauma(s) primário(s) que vai dar significado ao conflito atual e servir-lhe de linguagem, pelo mecanismo da condensação das lembranças, a que nos referimos acima, ou seja, material ligado ao conflito antigo é conservado no inconsciente, para ser tomado no significado do conflito atual e servir-lhe de linguagem, isto é, de sintoma. Então no caminho que Freud fez ao analisar os casos de paranoia recorrendo à memória, às lembranças e tendo presente o recalque, Lacan (2008, p.143) irá retransmitir da seguinte forma:

...à medida que ele (o paranoico) avança, repensa retroativamente seu passado e encontra até nos anos mais recuados a origem das perseguições cujo alvo é ele. Ele tem algumas vezes maior a dificuldade em situar um acontecimento, e sente-se bem sua tendência a projetar isso por um jogo de espelhos num passado que se torna ele próprio bastante indeterminado, um passado de retorno eterno

A diferença é que enquanto o neurótico dá um testemunho encoberto do inconsciente, o paranoico dá um testemunho aberto, difícil de compartilhar no discurso dos outros. A memória e as lembranças aqui são de um ser humano atormentado pelo sofrimento, constituída de mensagens, códigos, imagens, cores, afetos, falas. Isso é a memória humana. Ao que não é dado a expressão, se extingue, mas há os que levam um longo tempo a se extinguirem “que continuam a circular na memória”, (Lacan 2008, p. 181) e faz com que o ser humano recomece  experiências de aparência prazerosa, que estão conectados à memória, persistem no inconsciente, e trazem em si conteúdos dolorosos, sombrios.
Observação: As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.

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