A relação
entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia
Considerações
I
Quando
Freud pensa a topografia mental ele o faz a luz das experiências perceptivas
externas e internas. Suas interrogações surgem quando se depara com o enigma:
Os processos internos (pensamentos, sentimentos) avançam gerando a consciência
ou a consciência abre caminho até eles? E assim ele coloca a terceira
alternativa: o inconsciente é efetuado em algum material que permanece
desconhecido, enquanto o pré-consciente é colocado em vinculação com
representações verbais, que são resíduos de lembranças.
Não
podemos deixar de considerar que existe uma história filogenética, que habita
cada um de nós e diz respeito também a cultura. O desenvolvimento de cada
pessoa é como nos diz Freud (1900-1901, p.578) a “recapitulação abreviada” da
história humana através das circunstâncias e provações ao longo da vida que
revelam seja como repetição, alucinação das antiguidades anímicas dos mais
antigos e obscuros recantos da vida humana.
O
inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, “em sua natureza mais
íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão
incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo
externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais”. (Freud 1900-1901
p.637). O que podemos relembrar e
reelaborar do recalcado, é que nos traços mnêmicos que diz respeito a psicose
paranoica o ego é arrastado para longe da realidade, e ao mesmo tempo tentaria
reparar o dano causado e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade
às expensas do id, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as
mesmas objeções que a antiga, através do delírio e da alucinação. Serve ao
desejo de poder do id, e a fuga, da realidade é sucedida por uma fase de
remodelamento do ego. A paranoia repudia e tenta substituir, transformar a
realidade sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com a própria
realidade, ou seja, sobre os traços de memória, as ideias e os julgamentos continuamente
enriquecida e alterada por novas percepções, ao longo do tempo. Mas não é só
com o vivido que o sujeito tem que se haver, há que também conseguir para si
próprio percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, o que se dá
através da alucinação. É claro que existe aflições, sofrimento nas alucinações
e nos delírios, pelas forças conflitantes em jogo, pois o fragmento de
realidade rejeitado se
impõe à mente.
Que tudo o
que é produzido pelas experiências remotas da infância, através de vivências, ou do imaginário
para tornar-se consciente ligam-se a novas percepções externas presentes, é
algo que a vastidão do inconsciente retém como lembranças que voltará à
consciência. Mas as lembranças residuais estão contidas próximas ao consciente,
e sua energia pode estender-se do pré-consciente para o consciente. Quando uma
lembrança é revivida a sua energia permanece na lembrança, enquanto que uma
alucinação que não é distinguível de uma percepção pode surgir quando a energia
se transfere inteiramente para o pré-consciente, sem se estender pelas
lembranças. É certo que as vivências infantis barradas pelo inconsciente, tidas
como desprazeirosas, no transcurso do desenvolvimento, há um aumento da
necessidade de liberação, de descarga, que ocorrerá através da construção de
vínculos, representações, significantes, para se tornarem conscientes. Com o
recalque e o que Lacan chama de nome-do-pai, ou seja, a lei, estas lembranças
aparecem na paranoia, como compulsão, alucinação, delírio.
Poderíamos
pensar que quanto mais cedo as vivencias infantis forem barradas pelo superego
estarão “a salvo” de um retorno deslocado da realidade. Mas se isso não é
possível os pensamentos inconscientes e lembranças recalcadas são trazidos à
consciência superando a resistência, os pensamentos que emergem do inconsciente
são ouvidos então interiormente ou alucinados da mesma forma que as vozes. As
alucinações (Lacan 2008, p. 168),
seja nos “seus contrastes
recíprocos, nas oposições complementares fazem parte da organização subjetiva
sendo necessário segui-las em sua sucessão no tempo”, são fragmentos de lembranças,
reproduções de uma impressão real, que se reproduzem por causa de um grande
interesse ligado a elas, ou como uma (Lacan 2008, p.168) “realidade que se
apresenta como significante”. Que
o recalcado aqui habita disso não temos dúvida, da mesma forma que retorna. Os
sintomas devem ser descritos como sintomas de retorno do recalcado. Na
representação delirante há um conteúdo mnêmico. O retorno do recalcado em
imagens visuais - as alucinações mnêmicas da paranoia - sofrem uma distorção,
uma imagem nova, semelhante, toma o lugar da que foi recalcada. As
autoacusações recalcadas retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta,
que ficam sujeitos a uma censura, que os leva a serem substituídos por outras
representações associadas, ou são ocultados por um modo de expressão
indefinido, sendo relacionados com experiências recentes que nada mais são do
que experiências análogas às antigas.
Encontramos
na paranoia uma fonte para a formação de sintomas, que são as representações
delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso, os
sintomas do retorno do recalcado, que fazem exigências à atividade de
pensamento do ego, até que possam ser aceitas sem contradição. Como não são
influenciáveis, o ego precisa adaptar-se a elas, numa formação delirante
combinatória de delírios interpretativos que terminam por uma alteração do ego.
Assim as lembranças que retornam (Freud 1896, p.274) “sofrem uma distorção
ao serem substituídas por imagens análogas, extraídas do momento presente. As
vozes lembram a autocensura, distorcidas a ponto de se tornarem indefinidas a
se transformarem em ameaças”; configurando
um estado de desconfiança. Os sintomas de compromisso do retorno do recalque e substituição subsequentes
de lembranças que contradizem
a alteração do ego revela-se pelos sintomas do retorno do recalcado.
A
lembrança está na ordem simbólica, onde os registros são distintos, assim não é
possível saber o que está em primeiro ou segundo plano e porque esta ou aquela
vem à lembrança e seu valor. São as percepções, as representações que emergem
enquanto realidade, de uma significação que não foi simbolizada. Uma
significação que é rejeitada e reaparece no fenômeno paranoico, como eus
camuflados, refratados, só possível de acessar pelo registro da fala. A palavra
é assim um acordo, um entendimento que é preciso reconectar com as marcas
mnêmicas. Como falamos acima o que ficou de fora do recalque, que não foi
incluído no recalque, é o destino que cada sujeito dá ao Nome-do-pai, à
castração, ao pai simbólico, a lei. Diante da foraclusão o que retorna é o que
fica de fora da lei. Assim o que fica de fora nos dá a imagem de um buraco, ao
qual Freud irá falar de “fueros”, ou seja uma falha, uma ruptura que é
preenchida pelo que Lacan (2008, p.59) fala “peça trazida pela fantasia
psicótica”, em que o recalque e o retorno do recalcado são uma só e mesma
coisa, expressa na linguagem. Então o que se trata é da ordem de um saber. O sujeito
que alucina e/ou delira sabe do que se trata. O importante aqui é citar que o
presidente Schreber em suas memórias, capitulo III, tanto sabia, das
implicações dos fatos e lembranças de sua infância, relembrado por Lacan (2008,
p.93) que Schreber “comportava
observações concernentes à sua família, o que nos teria provavelmente
esclarecido sobre seu delírio inaugural em relação a seu pai ou a irmão, ou a
alguém entre seus parentes, e sobre o que se chama comumente os elementos
significativos transferenciais”.
É com o
que resta que cada um compõe seu mundo. Se na paranoia a alucinação é o retorno
do que não foi simbolizado e o que não foi simbolizado diz respeito às
“escolhas” sexuais infantis, ao destino que se dá a lei, o que ocorre é a
fragmentação do eu (p.119), pois no que vai sendo revelado pela alucinação e/ou
delírio há a dificuldade de encaixar, amarrar (p.143). É o sentido do(s)
trauma(s) primário(s) que vai dar
significado ao conflito atual e servir-lhe de linguagem, pelo mecanismo da
condensação das lembranças, a que nos referimos acima, ou seja, material ligado
ao conflito antigo é conservado no inconsciente, para ser tomado no significado
do conflito atual e servir-lhe de linguagem, isto é, de sintoma. Então no
caminho que Freud fez ao analisar os casos de paranoia recorrendo à memória, às
lembranças e tendo presente o recalque, Lacan (2008, p.143) irá retransmitir da
seguinte forma:
...à
medida que ele (o paranoico) avança, repensa retroativamente seu passado e
encontra até nos anos mais recuados a origem das perseguições cujo alvo é ele.
Ele tem algumas vezes maior a dificuldade em situar um acontecimento, e
sente-se bem sua tendência a projetar isso por um jogo de espelhos num passado
que se torna ele próprio bastante indeterminado, um passado de retorno eterno.
A
diferença é que enquanto o neurótico dá um testemunho encoberto do
inconsciente, o paranoico dá um testemunho aberto, difícil de compartilhar no
discurso dos outros. A memória e as lembranças aqui são de um ser humano
atormentado pelo sofrimento, constituída de mensagens, códigos, imagens, cores,
afetos, falas. Isso é a memória humana. Ao que não é dado a expressão, se extingue,
mas há os que levam um longo tempo a se extinguirem “que continuam a
circular na memória”, (Lacan 2008, p. 181) e faz com que o ser humano
recomece experiências de
aparência prazerosa, que estão conectados à memória, persistem no inconsciente,
e trazem em si conteúdos dolorosos, sombrios.
Observação:
As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.
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