A relação
entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia
A memória
que interessa a cada um de nós é gravada e articulada de diversas maneiras. Que
registros são esses? Que não é possível localizar no tempo e no espaço, que
habitam nosso psiquismo e se interconectam como uma rede de infinitas ligações
transcritas e retranscritas, inundadas de representações, significado e
significantes que se refazem de forma dialéticas indo e vindo
ininterruptamente? Que Lacan (2008, p.183) irá nos sinalizar a marcação que
Freud faz de pontos de verificação cronológicos, em sistemas que se constituem “entre zero e um ano
e meio, depois entre um ano e meio e quatro anos, depois entre quatro e oito
anos” etc. Independente
destas marcações no tempo o que importa é ter presente que esses registros se
constituem e se refazem continuamente. Nossos pensamentos, lembranças vão sendo
formados mutuamente contraditórios, combinando-se para formar condensações, por
onde a representação da realidade pode ser remodelada de diversas formas,
através de vínculos que se revelarão na “associação livre”. Decodificá-los,
interpretá-los, encontrar os “fueros”, “amarrá-los” eis a questão.
Os traços
mnêmicos de nossas impressões são lembrados sejam como palavras, atitudes de
compromisso, repetições, delírios, alucinação, como lembranças fragmentadas,
sintomas primários e secundários de defesa, sintomas. Os “delírios”, as
“alucinações” que se impõe como percepções representam uma tentativa de
unificação no texto do real, em busca de legitimidade.
A questão
é que esses registros aparecem continuamente nas coisas que nos dão prazer e as
que nos dão desprazer, embora de formas diferentes, porque o que vale em um sistema não
vale em outro, o que vale em uma circunstancia, não vale em outra. E nessa
confusão dos mecanismos surge a desordem, a defesa patológica, pois na
regressão ocorre uma série de superposições de acordos, coerências,
incoerências entre os discursos, que vai constituir as intenções, os lamentos,
a obscuridade, a confusão em que vivemos. Quando afirmamos ao negar e negamos
afirmando, diz respeito a uma dinâmica da simplificação do discurso, que é
secreta e nos escapa e sentimos nem sempre decifrar esse mistério. Não é
possível compreender a paranoia e nenhuma outra estrutura sem levar em conta, a
organização anterior do sujeito, sua história, seus desejos, sua
ancestralidade, o destino que dá à lei, o que não é possível integrar,
simbolizar, o que é preservado e porque.
Saber até
onde é possível recuar as lembranças não é possível precisar. É possível supor
que esse já conhecido habita o psiquismo nos seus mais remotos e recônditos
espaços e tempos, desde sempre, através dos arquétipos inconscientes e que a
dualidade que vemos tão presente na estrutura das psicoses remete a duplicidade
senhor-escravo que habita no interior da sociedade, nos mais diversos tempos
pelas diversas formas de servidão e que pressiona o recalcado no sentido de uma
libertação.
Apesar da
satisfação do trabalho realizado e dos objetivos atingidos pela articulação das
categorias aqui estudadas, fica sempre algo da falta, de novas interrogações.
Há que repensarmos a ênfase na clínica medicamentosa e na clínica do sintoma.
Estas reflexões continuarão de forma ininterrupta, em um movimento que faz
parte da vida que flui e reflui. Há que ressaltarmos que sem compreender o
sujeito como alguém que faz e constrói sua história, suas escolhas, que é
determinado pela história cultural da qual faz parte e a determina, que não é
possível ele compreender a si próprio, seu desejo sua história sem resgatar
suas lembranças, sua memória, seus limites, sua lei, sem estar apaziguado com
elas. Que a intervenção no âmbito da subjetividade do sujeito se dá pela ênfase
no sintoma e não na compreensão dialética de suas lembranças, sua memória, sua
história, nos remete as questões: está na memória do sujeito às respostas a
todas os seus conflitos? A fragmentação vivenciada nas estruturas psíquicas
dizem respeito a reintegração de diversos eus? Qual a diferenças entre essas
fragmentações? Até onde é possível recuar na ancestralidade para compreender as
articulações da existência do sujeito? Estas
são desdobramentos com ênfase no resgate da memória e lembranças, reflexões que
poderão seguir seu curso e outras que por certo no fluir da vida há de vir.
Referências
FREUD, S. Carta 52 (1950/1892/1899). Obras Completas de
Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Carta 57 (1950/1892/1899). Obras Completas de
Psicanálise – volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Rascunho H (1950/1892/1899). Obras Completas de
Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Rascunho K (1950/1892/1899). Obras Completas
de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ As Neuropsicoses de
Defesa (1894). Obras
Completas de Psicanálise - volume III. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ A psicologia dos
Processos Oníricos (1900-1901).
Obras Completas de Psicanálise - volume V. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ A Divisão do Ego no
Processo de Defesa (1940/1938).
Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Lembranças da
Infância e Lembranças Encobridoras (1907/1920).
Obras Completas de Psicanálise - volume VI. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Recordar, Repetir e
Elaborar (1914). Obras
Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ A
História do Movimento Psicanalítico (1914).
Obras Completas de Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Sobre o Narcisismo (1914). Obras Completas de Psicanálise
- volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ O Inconsciente (1915). Obras Completas de Psicanálise
- volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Observações
Adicionais Sobre as Neuropsicoses de Defesa (III Análise de um caso
de Paranoia crônica) (1896).
Obras Completas de Psicanálise - volume III. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Um
caso de Paranoia que Contraria a Teoria Psicanalítica da
Doença (1915). Obras Completas de
Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ O Caso Schreber,
Artigos Sobre Técnica e Outros Trabalhos (1011
– 1913). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro,
Imago-1996.
_________ A
Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (1924). Obras Completas de Psicanálise
- volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Neurose e psicose (1924/1923). Obras
Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ O
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Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ Uma
Nota Sobre o Bloco Mágico (1925/1924).
Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
Lacan, J.
– Da Psicose Paranoica
em suas relações com a Personalidade (Primeiros
escritos Sobre a Paranoia) - Tradução de Aluísio Menezes, Marco Antônio
Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da Silveira jr. - FORENSE-UNIVERSITÁRIA - Rio
de Janeiro – 1ª edição – 1987 - Traduzido do original francês, De la Psychose
Parano'iaque dans ses Rapports avec La Personnalisé. Paris, Seuil, 1975. Esta
obra, que constituía a tese de doutorado em medicina de Jacques Lacan, foi
publicada inicialmente por Le Françors, Paris, 1932.
_________ O
Seminário 3 –
As Psicoses – Rio de Janeiro,
Zahar – 2008.
_________ O
Seminário 5 –
As Formações do Inconsciente -
A Foraclusão do nome-do-pai – Rio de Janeiro, Zahar – 1999.
_________O
Seminário 5 –
As Formações do Inconsciente -
A metáfora paterna – Rio de
Janeiro, Zahar – 1999.
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