12 de fevereiro de 2013

Lembranças e Paranoia - Memória

A relação entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia

Memória

Ao escrever sobre memória materializo parte das lembranças dos estudos teórico-práticos articulados em minha memória, apreendidos por mim. A questão é que na folha de papel não é possível outras notas, já os traços permanentes das experiências vivenciadas são preservados em “sistemas mnêmicos”, que não só se superpõe, mas se equivalem e se unem em uma rede de conexões receptiva e sempre pronta em suas diversas camadas que são o pré-consciente e o consciente, que servem de anteparo na redução das excitações que serão guardadas como marcas mnêmicas, que realizam um trajeto dialético, permeável entre o mundo interno e externo da consciência. A noção de tempo nesta complexa rede não segue o calendário convencional.

Ausência de lembranças das impressões de outrora, parecem problemas de menor monta na reconstrução da história dos pacientes e das pessoas em geral, o que não deixa de fazer parte da visão corriqueira de que crianças não possuem lembranças e que o que elas falam não podem ter conteúdos de verdades vivenciadas e sim somente de fantasias. É fato que Freud (1899) irá nos lembrar que quanto mais recuado no tempo estão as lembranças maiores são as possibilidades de reprodução da cadeia de lembranças e assim “toda a função da memória pode ser avançada ou retardada”.  (Freud 1899). E Lacan (2008) nos lembra que “compreender o que há em Freud é assinalar a importância da linguagem e da fala”, seja o inconsciente enquanto linguagem ou sua expressão pela fala.

Falar de memória é falar de como se constrói, gravam e conservam os traços que vão sendo formados ao longo do tempo, como retornam e seus efeitos. Assim a memória é um tempo e um espaço que não podem ser compreendidos de forma linear. O que se propaga nestes espaços-tempos não é possível ser apropriado de forma concreta. O tempo na memória é complexo, sem garantia de exatidão, misturam-se com infinitas emoções, impressões, vivências e resinificações. O que é atraente, misterioso na construção da memória é a complexa dinâmica psíquica que Freud mergulhou para compreender, formulando uma teoria da memória quando afirma que o material das marcas mnêmicas reordena-se de tempos em tempos, formando novas lembranças. Ele explica a memória como um sistema: “Em nosso aparelho psíquico, permanece um traço das percepções que incidem sobre ele. A este podemos descrever como “traços mnêmicos”, e à função que com ele se relaciona damos o nome de “memória”. (Freud 1900-1901 – p. 568-569)

Portanto sem a retenção das experiências, e fatos da vida em marcas mnêmicas através de associações, condensações, cadeias de significantes, não há memória, Explicar as lembranças que vão constituindo a memória significa remontar alguma coisa já conhecida. Assim a lembrança que a memória não consegue reter diz respeito a eventos traumáticos que o ego não consegue suportar. O esquecimento e o recalque serve então como defesa para aquilo que este ego não consegue lidar e neste percurso de “arquivamento” resistências vão sendo erguidas passo a passo.

Essas marcas, traços revelam o prazer, o desprazer que os objetos ausentes ou presentes deixaram ou continuam deixando. Ou seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações. Assim a historia que vai sendo construída desde sempre é traçada pelas tramas do vivido que se entrecruzam, forçando a presença do passado no momento presente, e a construção de uma realidade psíquica que não coincide totalmente com a realidade atual ou mesmo do passado.

Esses traços que constituem nossa memória no processo de regressão do tempo passam por “retranscrição”, rearranjos para adaptar-se a novas situações. Freud (1950(1892-1899) p.281) vai nos lembrar na carta 52 que “a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações”. Como esses diferentes registros são “armazenados” e em que topografia. Para Freud ainda são um enigma que transcende o tempo e a própria topografia da mente. Os registros, as vivências vão sendo inscritos ao longo da vida e na fronteira entre essas épocas vão sendo traduzidos, transcritos de forma a manter o equilíbrio psíquico.

Nesta mesma carta Freud alerta-nos que cada tradução, ou transcrição subseqüente refaz o processo de excitação. É possível supor que se a tradução não se faz em uma parte do material pode ocorrer lacunas, que Freud (1950 (1892-1899) p. 283) denomina “fueros” e que “estamos em presença de sobrevivências”, do “recalcamento”, ou seja, se determinadas experiências não puderam ser refeitas de forma que pudessem continuar sendo lembradas, formar-se-á lacunas que serão recalcadas  e “seu motivo é sempre a produção de desprazer que seria gerada por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução”(p.283), o que forma uma defesa normal em função do desprazer. Freud irá nos lembrar que “a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido”, é o que Lacan irá referendar como cadeia de significantes.

Quando fatos ocorrem e produzem uma sensação de desprazer, em épocas sucessivas da vida ao ser relembrado, redespertado, irá produzir um novo desprazer então não pode ser inibido porque “a lembrança se comporta como um evento atual”, ou seja, assim a lembrança assume conotações do aqui, agora no real. (Freud carta 52 p. 283-284)

A ocorrência de um evento anterior desprazeiroso pode desencadear uma defesa, que é o recalcamento.  Mas nem todas as experiências produzem desprazer; em sua maioria está o prazer, que não é inibido; e uma vez não inibido manifesta-se como compulsão. Assim o prazer de uma lembrança referente a uma experiência em uma fase diferente da vida é acompanhada de uma compulsão e o desprazer pelo recalcamento (Freud carta 52 p. 284).

Se a tradução a uma nova fase da vida é inibida ou não é uma interrogação. Na sequência de nossas reflexões iremos falar de como as lembranças recalcadas que dizem respeito ao que era atual no caso da paranoia este recalcado (Freud carta 52 p. 284) irá ocorrer entre os 8 e os 14 anos.

O preenchimento das lacunas na memória ao longo do tempo tem como função superar as resistências devidas a repressão de experiências que precisavam ser esquecidas, ou que nunca poderia ter sido “esquecido” como nos lembra Freud (1900 -1901 p.570) (1911-1913 p. 164) “porque nunca se tornou consciente”.  Mas há experiências cujas lembranças não podem ser recuperadas pois aconteceram em um tempo remoto e que não foram compreendidas quando ocorreram, mas quando imediatamente compreendidas e interpretadas não podem, segundo ele serem recuperadas.

Na sequencia de construção da memória e das lembranças, uma lembrança anterior pode ser usada como um véu para encobrir uma lembrança posterior ou um acontecimento anterior é encoberto por uma lembrança posterior. A questão a saber quais lembranças impossíveis de serem erradicadas na profundeza de nossa mente vão influenciar até o fim de nossa vida. O que for considerado importante de imediato é recordado e o que é julgado não importante é esquecido. O princípio que rege a escolha das lembranças diz respeito ao tempo vivido pelo indivíduo. 

O que Lacan (2008 p.126) irá nos lembrar ao falar da carta 52 é que está na rememoração dos distúrbios  a noção de defesa. E que ao explorarmos os distúrbios de rememoração, procurando o que se tornou os acontecimentos da vida é que vamos descobrir que eles podem estar onde não esperamos, ou seja, não é possível reencontrar a “localização mnésica, cronológica dos acontecimentos, de restituir uma parte do tempo perdido, mas que há também coisas que se passam no plano tópico”. Assim o que conta são os pontos de articulação simbólica rememorada pelo sujeito. Ao citar a carta 52 (p.180) Lacan irá afirmar que “o fecundo na experiência da cura, são os fenômenos de memória” e que a construção do aparelho psíquico em Freud é feito para explicar os fenômenos de memória.
Observação: As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.

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