A relação entre as experiências
vivenciadas e os conteúdos na paranoia
Memória
Ao
escrever sobre memória materializo parte das lembranças dos estudos
teórico-práticos articulados em minha memória, apreendidos por mim. A questão é
que na folha de papel não é possível outras notas, já os traços permanentes das
experiências vivenciadas são preservados em “sistemas mnêmicos”, que não só se
superpõe, mas se equivalem e se unem em uma rede de conexões receptiva e sempre
pronta em suas diversas camadas que são o pré-consciente e o consciente, que
servem de anteparo na redução das excitações que serão guardadas como marcas
mnêmicas, que realizam um trajeto dialético, permeável entre o mundo interno e
externo da consciência. A noção de tempo nesta complexa rede não segue o
calendário convencional.
Ausência
de lembranças das impressões de outrora, parecem problemas de menor monta na
reconstrução da história dos pacientes e das pessoas em geral, o que não deixa
de fazer parte da visão corriqueira de que crianças não possuem lembranças e
que o que elas falam não podem ter conteúdos de verdades vivenciadas e sim
somente de fantasias. É fato que Freud (1899) irá nos lembrar que quanto mais
recuado no tempo estão as lembranças maiores são as possibilidades de
reprodução da cadeia de lembranças e assim “toda a função da
memória pode ser avançada ou retardada”. (Freud
1899). E Lacan (2008) nos lembra que “compreender o que há
em Freud é assinalar a importância da linguagem e da fala”, seja o inconsciente enquanto linguagem
ou sua expressão pela fala.
Falar de
memória é falar de como se constrói, gravam e conservam os traços que vão sendo
formados ao longo do tempo, como retornam e seus efeitos. Assim a memória é um
tempo e um espaço que não podem ser compreendidos de forma linear. O que se
propaga nestes espaços-tempos não é possível ser apropriado de forma concreta.
O tempo na memória é complexo, sem garantia de exatidão, misturam-se com
infinitas emoções, impressões, vivências e resinificações. O que é atraente,
misterioso na construção da memória é a complexa dinâmica psíquica que Freud
mergulhou para compreender, formulando uma teoria da memória quando afirma que
o material das marcas mnêmicas reordena-se de tempos em tempos, formando novas
lembranças. Ele explica a memória como um sistema: “Em nosso aparelho
psíquico, permanece um traço das percepções que incidem sobre ele. A este
podemos descrever como “traços mnêmicos”, e à função que com ele se relaciona
damos o nome de “memória”. (Freud
1900-1901 – p. 568-569)
Portanto
sem a retenção das experiências, e fatos da vida em marcas mnêmicas através de
associações, condensações, cadeias de significantes, não há memória, Explicar
as lembranças que vão constituindo a memória significa remontar alguma coisa já
conhecida. Assim a lembrança que a memória não consegue reter diz respeito a eventos traumáticos que o ego
não consegue suportar. O esquecimento e o recalque serve então como defesa para
aquilo que este ego não consegue lidar e neste percurso de “arquivamento”
resistências vão sendo erguidas passo a passo.
Essas
marcas, traços revelam o prazer, o desprazer que os objetos ausentes ou
presentes deixaram ou continuam deixando. Ou seja, há um passado que se cria e
se recria em novas articulações. Assim a historia que vai sendo construída
desde sempre é traçada pelas tramas do vivido que se entrecruzam, forçando a
presença do passado no momento presente, e a construção de uma realidade
psíquica que não coincide totalmente com a realidade atual ou mesmo do passado.
Esses
traços que constituem nossa memória no processo de regressão do tempo passam
por “retranscrição”, rearranjos para adaptar-se a novas situações. Freud
(1950(1892-1899) p.281) vai nos lembrar na carta 52 que “a memória não se faz
presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada
em diferentes espécies de indicações”. Como
esses diferentes registros são “armazenados” e em que topografia. Para Freud
ainda são um enigma que transcende o tempo e a própria topografia da mente. Os
registros, as vivências vão sendo inscritos ao longo da vida e na fronteira
entre essas épocas vão sendo traduzidos, transcritos de forma a manter o
equilíbrio psíquico.
Nesta
mesma carta Freud alerta-nos que cada tradução, ou transcrição subseqüente
refaz o processo de excitação. É possível supor que se a tradução não se faz em
uma parte do material pode ocorrer lacunas, que Freud (1950 (1892-1899) p. 283)
denomina “fueros” e que “estamos em presença
de sobrevivências”, do “recalcamento”, ou
seja, se determinadas experiências não puderam ser refeitas de forma que
pudessem continuar sendo lembradas, formar-se-á lacunas que serão recalcadas e “seu motivo é sempre
a produção de desprazer que seria gerada por uma tradução; é como se esse
desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho
de tradução”(p.283), o que forma uma defesa normal em função do desprazer.
Freud irá nos lembrar que “a defesa patológica
somente ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não
foi traduzido”, é o que Lacan
irá referendar como cadeia de significantes.
Quando
fatos ocorrem e produzem uma sensação de desprazer, em épocas sucessivas da
vida ao ser relembrado, redespertado, irá produzir um novo desprazer então não
pode ser inibido porque “a lembrança se
comporta como um evento atual”, ou
seja, assim a lembrança assume conotações do aqui, agora no real. (Freud carta
52 p. 283-284)
A
ocorrência de um evento anterior desprazeiroso pode desencadear uma defesa, que
é o recalcamento. Mas nem
todas as experiências produzem desprazer; em sua maioria está o prazer, que não
é inibido; e uma vez não inibido manifesta-se como compulsão. Assim o prazer de
uma lembrança referente a uma experiência em uma fase diferente da vida é
acompanhada de uma compulsão e o desprazer pelo recalcamento (Freud carta 52 p.
284).
Se a
tradução a uma nova fase da vida é inibida ou não é uma interrogação. Na
sequência de nossas reflexões iremos falar de como as lembranças recalcadas que
dizem respeito ao que era atual no caso da paranoia este recalcado (Freud carta
52 p. 284) irá ocorrer entre os 8 e os 14 anos.
O
preenchimento das lacunas na memória ao longo do tempo tem como função superar
as resistências devidas a repressão de experiências que precisavam ser
esquecidas, ou que nunca poderia ter sido “esquecido” como nos lembra Freud
(1900 -1901 p.570) (1911-1913 p. 164) “porque nunca se
tornou consciente”. Mas
há experiências cujas lembranças não podem ser recuperadas pois aconteceram em
um tempo remoto e que não foram compreendidas quando ocorreram, mas quando
imediatamente compreendidas e interpretadas não podem, segundo ele serem
recuperadas.
Na sequencia
de construção da memória e das lembranças, uma lembrança anterior pode ser
usada como um véu para encobrir uma lembrança posterior ou um acontecimento
anterior é encoberto por uma lembrança posterior. A questão a saber quais lembranças
impossíveis de serem erradicadas na profundeza de nossa mente vão influenciar
até o fim de nossa vida. O que for considerado importante de imediato é
recordado e o que é julgado não importante é esquecido. O princípio que rege a
escolha das lembranças diz respeito ao tempo vivido pelo indivíduo.
O que
Lacan (2008 p.126) irá nos lembrar ao falar da carta 52 é que está na
rememoração dos distúrbios a
noção de defesa. E que ao explorarmos os distúrbios de rememoração, procurando
o que se tornou os acontecimentos da vida é que vamos descobrir que eles podem
estar onde não esperamos, ou seja, não é possível reencontrar a “localização mnésica,
cronológica dos acontecimentos, de restituir uma parte do tempo perdido, mas
que há também coisas que se passam no plano tópico”. Assim o que conta são
os pontos de articulação simbólica rememorada pelo sujeito. Ao citar a carta 52
(p.180) Lacan irá afirmar que “o fecundo na
experiência da cura, são os fenômenos de memória” e que a construção do aparelho
psíquico em Freud é feito para explicar os fenômenos de memória.
Observação:
As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.
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