19 de fevereiro de 2013

Lembranças e Paranoia - Paranoia

A relação entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia
  
Paranoia
  
A função paterna e materna e os desejos infantis envolvidos vamos encontra-los ao falarmos de paranoia e dos casos analisados por Freud. Quando falamos de paranoia é importante ter presente a origem do termo derivado do grego (para = contra, noos = espírito), (ROUDINESCO, 1998, p.572) onde podemos ler “contra o espírito”, designando a loucura. Freud (1895, p.259 – Fig.1) fala da paranoia como “na paranoia o afeto é conservado. O conteúdo da ideia é conservado, mas projetado para fora, a alucinação é hostil ao ego e favorável à defesa o que resulta em uma defesa permanente sem ganho”. Uma pré-disposição psíquica a um estado paranoico e a dificuldade em tolerar situações que para outra pessoa seria possível, coloca a paranoia próxima dos estados chamados “normais”. Assim a defesa paranoica significa poupar o ego de algo; algo que foi recalcado e que ao retornar seja em forma de lembrança, alucinação ou delírio, poupa o ego e projeta seu conteúdo no mundo externo. O que chamamos de aproximação da vida “normal” dá-se pelo uso excessivo do mecanismo da projeção, muito utilizado na vida normal. A ideia delirante em contraponto ao conteúdo e ao afeto incompatível com o ego são projetados no mundo externo. Esse mundo interno retorna pela via do mundo externo não mais ao inconsciente, mas ao consciente através de uma formação de compromisso para serem aceitas, para que o ego se adapte a uma reestruturação do próprio ego.

Para Freud (1924 p.207) a noção de “normalidade” situa-se no que ele diz “chamamos um comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas características de ambas as reações — se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade”. Em uma psicose o ego, a serviço e por predominância do id, se afasta de um fragmento da realidade delineando uma perda de contato com esta. Ele define a paranoia como uma psicose de defesa; isto é, que ela provém do recalcamento de lembranças aflitivas, sendo seus sintomas determinados pelo conteúdo do que foi recalcado. Entretanto, a paranoia deve ter um mecanismo especial de recalcamento, uma sintomatologia que pode aparecer em sujeitos que tiveram boa saúde mental onde ocorre uma incompatibilidade com a vida representativa, ou seja, quando se confronta com uma experiência, uma representação ou um sentimento que desencadeia um afeto aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo. Nas representações incompatíveis Freud (1894) irá nos falar que é possível recordar os esforços defensivos, a intenção de “expulsar aquilo para longe”, de não pensar no assunto, de suprimi-lo.

Na análise de um caso de paranoia crônica (1894), ele irá conduzir com a paciente a sequencia terapêutica num sentido de regressão até as cenas do relacionamento sexual com o irmão que durou dos seis aos dez anos. As alucinações eram partes do conteúdo de experiências infantis recalcadas, ou seja, sintomas do retorno do recalcado, como também de uma formação de compromisso entre a resistência do ego e o poder do retorno do recalcado.
Freud (1894) afirma que na paranoia há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as autoacusações, levando a um fracasso das defesas, e aquilo do qual o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada. Na paranoia o recalcamento é também o núcleo do mecanismo psíquico, e o que foi recalcado é uma experiência sexual na infância. Parte dos sintomas provém da defesa primária, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem. Na paranoia, a autoacusação é recalcada por um processo que se pode descrever como projeção, e pela formação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação, ficando privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações delirantes.

No artigo Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença (1915, p.273.), Freud irá interrogar o conceito da escolha objetal narcisista como algo marcante no sujeito que sofre de paranoia. Embora ele afirma que “não sustentamos, é verdade, como universalmente válida e sem exceção, a tese de que a paranoia é determinada pelo homossexualismo”, há neste caso, o que ele denomina de um “complexo materno” que sustenta o desenvolvimento de um delírio de perseguição, ou seja, o amor pela mãe se torna, é colocado em termos de uma relação dual amorosa. A forma como o sujeito se desvencilha da relação pode coloca-lo em um delírio paranoico, para se proteger da relação com a figura masculina. A mãe torna-se então a perseguidora má. Se o complexo materno e as pulsões envolvidas não tivessem uma força desencadeadora, o desenvolvimento do delírio poderia ser dominado. Freud vai demonstrar novamente que através da regressão às memórias e vivências infantis, identificou como se deu as escolhas objetais e o processo de identificação em sua disposição paranoica. E afirma (Freud 1915 p. 277) que “esse uso retardado de impressões e esse deslocamento de lembranças com frequência ocorrem precisamente na paranoia e são característicos dela”. O mecanismo da projeção está presente de forma enfática. O que surpreende Freud neste caso é como na base paranoica em questão se realiza “o avanço de um objeto feminino para um masculino”.
Na construção paranoica há que haver desde a infância uma identificação com as figuras parentais que continuam onipotentes, permanecendo na fantasia e não no simbólico. Fica presente assim uma ameaça de aniquilamento que poderá ser um imperativo de perseguição no transcorrer da vida, ou seja, a figura paterna e materna continuará sendo ameaçadora. Então identificar-se com o pai ou com a mãe, o que é uma operação do ego, é uma possibilidade do inconsciente abandonar seus objetos. Como não foi possível a Schreber identificar-se com o pai, supõe-se aqui que as vivencias sofridas em sua infância com as experiências deste, e a manipulação de seu corpo, foi “mais fácil” a identificação com a figura feminina, ao mesmo tempo em que seus delírios podem revelar o que estava reprimido no inconsciente retornando através de um investimento narcísico.

Há que pensarmos nesta elaboração do caso Schreber, onde ele acreditava que existia um “método em sua loucura”. Compreendermos as causas da doença de Schreber é difícil, pois como sabemos Freud (1911, p.63-64)  não o analisou, mas afirmou encontrar-se “no terreno familiar do complexo paterno. A luta do paciente é explicável no campo de um conflito infantil com o pai que amava; os pormenores desde conflito (sobre o qual nada sabemos) foram o que determinou o conteúdo de seus delírios”. Os delírios de perseguição que diz respeito ao sujeito e ao seu perseguidor é, semelhante a alguém que desempenhou papel importante na vida emocional do sujeito e que funciona como um substituto. É uma forma de restabelecer, remontar um processo de reconstrução, que em uma idade remota, ficou por ser resolvida, resignificada. Então a emoção é projetada sob a forma de poder externo, e transformada no oposto. É possível que “a pessoa odiada e temida, foi, noutra época, amada e honrada”. Assim, no caso Schreber, é o contexto familiar e o que Freud chama de “complexo paterno”, vínculos de suas experiências infantis onde o pai interfere com a satisfação que a criança tenta obter e substituída na fantasia por alguma outra satisfação, é a ameaça paterna, a castração, que fornece o material para sua fantasia de desejo.

O caráter distinto da paranoia de Schreber revela-se nos sintomas onde para repelir uma fantasia de desejo homossexual, reagiu com delírios de perseguição e os delírios revelam estas relações e as remontam. No desenvolvimento do sujeito, o objetivo é a posse do objeto amoroso, objeto amoroso esse que pode começar por tomar a si próprio, como objeto amoroso, “que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo”. O tempo que transcorre entre esse amor narcísico e o amor objetal é particular de cada sujeito, mas no caso da paranoia consideramos que ele se estende a outras etapas do desenvolvimento.

 Dois mecanismos revelam-se ao analisar as memórias do presidente Schreber: o mecanismo de projeção presente no processo paranoico, diz respeito a supressão e modificação do conteúdo, do afeto de uma percepção interna, acessa a consciência sob a forma de percepção externa. O que deveria ter sido sentido internamente como amor é percebido externamente como ódio. Embora a projeção não seja específica da paranoia, não desempenha o mesmo papel em todas as formas de paranoia, além de ter “participação regular em nossa atitude para com o mundo externo”.

Outra questão importante é o mecanismo da repressão, que diz respeito a fixação, onde um componente instintual não se conduz na sequencia dos demais em um caminho “normal” de acordo com o desenvolvimento, é deixado para trás, num estádio mais infantil. Na sequencia a repressão assume um processo ativo, e a fixação constitui um retardamento passivo. Em seguida o que ocorre é o “fracasso da repressão, da irrupção, do retorno do reprimido”. Que exista uma multiplicidade de pontos de fixação, tantos quantos forem as pulsões que habitam o sujeito, devemos assim compreender a multiplicidade de retardamento e do fracasso do reprimido e seu retorno na paranoia e a formação de sintomas. Assim é importante a compreensão de que o trabalho dos delírios, a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento, ou seja, um processo de reconstrução. Se ela será bem sucedida ou não é outra questão. Vale ressaltar que na paranoia, é possível que após a libido ter sido retirada do objeto, reprimida, retorna ao sujeito como traços de megalomania, e que “a megalomania pode, por si mesma, constituir uma paranoia”. O que vale é o engrandecimento do ego. É um retorno a fase infantil do narcisismo, “no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego”.

O mecanismo psíquico na psicose e na psicose paranoica é de uma engenhosidade semelhante a fortificação de uma cidadela: O inconsciente e o consciente são cidadelas guardadas por uma censura crítica, um superego. Quando o que acarreta o relaxamento dessa censura é uma redução patológica da força crítica ou uma intensificação patológica das excitações inconscientes e o portão de acesso à motilidade que é a censura crítica permanece aberto, o guardião que é o portão é subjugado, as excitações inconscientes dominam o pré-consciente e então controla nossa fala, nossas ações ou forçam a regressão alucinatória e dirigem o curso do psiquismo. “A esse estado de coisas damos o nome de psicose”. Lacan (2008, p. 13) irá nos lembrar no histórico da paranoia que 70% dos doentes dos manicômios portavam a etiqueta paranoia e que um paranoico era uma pessoa má, um intolerante, um tipo de mau humor, orgulho, desconfiança, suscetibilidade e quando era por demais paranoico, ele começava a delirar. A desconstrução não só em sua nosografia, mas em sua compreensão mais ampla Lacan o fará ao falar (p.27), “Há uma loucura necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco de uma outra forma de loucura”.

Que Freud tenha nos casos em que analisou buscado relação com as experiências infantis vivenciadas é fato e Lacan o irá referendar em caracterizar o delírio como delírio de relações, que há significação, que é possível compreender, como fenômeno incompreensível que é; Que no fundamento da estrutura paranoica algo se tornou palavra e que acontece quando alguma coisa do mundo interior, que não foi primitivamente simbolizada aparece no mundo exterior, então o sujeito, como ele diz, se vê desarmado, incapaz de juntar as peças de seu quebra-cabeças, ou seja, integrar o que não foi simbolizado no real e que acarreta uma desagregação em cadeia. O que aparece é o delírio, aquilo que do recalque escapa. E é através desse fenômeno intuitivo, persecutório, que a projeção assume relevância. Que Lacan irá considerar o inconsciente enquanto ponto de partida, não exclui o ego enquanto primordial, pois é o que vai (Lacan 2008 p. 171) “manejar a relação com a realidade, de transformar essa relação, com fins que definem como sendo de defesa”. Essa é a defesa que está na origem da paranoia sob a forma de alucinação, de delírio. Defesa que se estabelece em função da rejeição de um significante fundamental, algo do primitivo, de um primeiro corpo de significantes, que deveria estar no interior e fica no exterior, é então excluído.
Observação: As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.

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