A relação
entre as experiências vivenciadas e os conteúdos na paranoia
Paranoia
A função
paterna e materna e os desejos infantis envolvidos vamos encontra-los ao falarmos
de paranoia e dos casos analisados por Freud. Quando falamos de paranoia é
importante ter presente a origem do termo derivado do grego (para = contra,
noos = espírito), (ROUDINESCO, 1998, p.572) onde podemos ler “contra o
espírito”, designando a loucura. Freud (1895, p.259 – Fig.1) fala da paranoia
como “na paranoia o afeto
é conservado. O conteúdo da ideia é conservado, mas projetado para fora, a
alucinação é hostil ao ego e favorável à defesa o que resulta em uma defesa
permanente sem ganho”. Uma pré-disposição
psíquica a um estado paranoico e a dificuldade em tolerar situações que para
outra pessoa seria possível, coloca a paranoia próxima dos estados chamados
“normais”. Assim a defesa paranoica significa poupar o ego de algo; algo que
foi recalcado e que ao retornar seja em forma de lembrança, alucinação ou
delírio, poupa o ego e projeta seu conteúdo no mundo externo. O que chamamos de
aproximação da vida “normal” dá-se pelo uso excessivo do mecanismo da projeção,
muito utilizado na vida normal. A ideia delirante em contraponto ao conteúdo e ao afeto
incompatível com o ego são projetados no mundo externo. Esse mundo interno
retorna pela via do mundo externo não mais ao inconsciente, mas ao consciente
através de uma formação de compromisso para serem aceitas, para que o ego se
adapte a uma reestruturação do próprio ego.
Para Freud
(1924 p.207) a noção de “normalidade” situa-se no que ele diz “chamamos um
comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas características de
ambas as reações — se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se
depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa
realidade”. Em uma psicose o ego, a serviço e por predominância do id, se
afasta de um fragmento da realidade delineando uma perda de contato com esta.
Ele define a paranoia como uma
psicose de defesa; isto é, que ela provém do recalcamento de lembranças
aflitivas, sendo seus sintomas determinados pelo conteúdo do que foi recalcado.
Entretanto, a paranoia deve ter um mecanismo especial de recalcamento, uma
sintomatologia que pode aparecer em sujeitos que tiveram boa saúde mental onde
ocorre uma incompatibilidade com a vida representativa, ou seja, quando se
confronta com uma experiência, uma representação ou um sentimento que
desencadeia um afeto aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo. Nas
representações incompatíveis Freud (1894) irá nos falar que é possível recordar
os esforços defensivos, a intenção de “expulsar aquilo para
longe”, de não pensar no
assunto, de suprimi-lo.
Na análise
de um caso de paranoia crônica (1894), ele irá conduzir com a paciente a
sequencia terapêutica num sentido de regressão até as cenas do relacionamento
sexual com o irmão que durou dos seis aos dez anos. As alucinações eram partes
do conteúdo de experiências infantis recalcadas, ou seja, sintomas do retorno
do recalcado, como também de uma formação de compromisso entre a resistência do
ego e o poder do retorno do recalcado.
Freud
(1894) afirma que na paranoia há um gradual comprometimento das resistências
que enfraquecem as autoacusações, levando a um fracasso das defesas, e aquilo
do qual o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada. Na
paranoia o recalcamento é também o núcleo do mecanismo psíquico, e o que foi
recalcado é uma experiência sexual na infância. Parte dos sintomas provém da
defesa primária, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança
e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem. Na
paranoia, a autoacusação é recalcada por um processo que se pode descrever como
projeção, e pela formação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras
pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação, ficando
privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações
delirantes.
No artigo
Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença (1915,
p.273.), Freud irá interrogar o conceito da escolha objetal narcisista como
algo marcante no sujeito que sofre de paranoia. Embora ele afirma que “não sustentamos, é
verdade, como universalmente válida e sem exceção, a tese de que a paranoia é
determinada pelo homossexualismo”, há neste caso, o que ele denomina de um
“complexo materno” que sustenta o desenvolvimento de um delírio de perseguição,
ou seja, o amor pela mãe se torna, é colocado em termos de uma relação dual
amorosa. A forma como o sujeito se desvencilha da relação pode coloca-lo em um
delírio paranoico, para se proteger da relação com a figura masculina. A mãe
torna-se então a perseguidora má. Se o complexo materno e as pulsões envolvidas
não tivessem uma força desencadeadora, o desenvolvimento do delírio poderia ser
dominado. Freud vai demonstrar novamente que através da regressão às memórias e
vivências infantis, identificou como se deu as escolhas objetais e o processo
de identificação em sua disposição paranoica. E afirma (Freud 1915 p. 277) que “esse uso retardado
de impressões e esse deslocamento de lembranças com frequência ocorrem
precisamente na paranoia e são característicos dela”. O mecanismo da projeção está presente
de forma enfática. O que surpreende Freud neste caso é como na base paranoica
em questão se realiza “o
avanço de um objeto feminino para um masculino”.
Na
construção paranoica há que haver desde a infância uma identificação com as
figuras parentais que continuam onipotentes, permanecendo na fantasia e não no
simbólico. Fica presente assim uma ameaça de aniquilamento que poderá ser um
imperativo de perseguição no transcorrer da vida, ou seja, a figura paterna e
materna continuará sendo ameaçadora. Então identificar-se com o pai ou com a
mãe, o que é uma operação do ego, é uma possibilidade do inconsciente abandonar
seus objetos. Como não foi possível a Schreber identificar-se com o pai,
supõe-se aqui que as vivencias sofridas em sua infância com as experiências
deste, e a manipulação de seu corpo, foi “mais fácil” a identificação com a
figura feminina, ao mesmo tempo em que seus delírios podem revelar o que estava
reprimido no inconsciente retornando através de um investimento narcísico.
Há que
pensarmos nesta elaboração do caso Schreber, onde ele acreditava que existia um
“método em sua loucura”. Compreendermos as causas da doença de Schreber é
difícil, pois como sabemos Freud (1911, p.63-64) não o analisou, mas afirmou encontrar-se “no
terreno familiar do complexo paterno. A luta do paciente é explicável no campo
de um conflito infantil com o pai que amava; os pormenores desde conflito
(sobre o qual nada sabemos) foram o que determinou o conteúdo de seus delírios”.
Os delírios de perseguição que diz respeito ao sujeito e ao seu perseguidor é,
semelhante a alguém que desempenhou papel importante na vida emocional do
sujeito e que funciona como um substituto. É uma forma de restabelecer,
remontar um processo de reconstrução, que em uma idade remota, ficou por ser
resolvida, resignificada. Então a emoção é projetada sob a forma de poder
externo, e transformada no oposto. É possível que “a pessoa odiada e temida,
foi, noutra época, amada e honrada”. Assim, no caso Schreber, é o contexto
familiar e o que Freud chama de “complexo paterno”, vínculos de suas
experiências infantis onde o pai interfere com a satisfação que a criança tenta
obter e substituída na fantasia por alguma outra satisfação, é a ameaça
paterna, a castração, que fornece o material para sua fantasia de desejo.
O caráter
distinto da paranoia de Schreber revela-se nos sintomas onde para repelir uma
fantasia de desejo homossexual, reagiu com delírios de perseguição e os
delírios revelam estas relações e as remontam. No desenvolvimento do sujeito, o
objetivo é a posse do objeto amoroso, objeto amoroso esse que pode começar por
tomar a si próprio, como objeto amoroso, “que passa daí para a
escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo”. O tempo que transcorre entre esse amor
narcísico e o amor objetal é particular de cada sujeito, mas no caso da
paranoia consideramos que ele se estende a outras etapas do desenvolvimento.
Outra
questão importante é o mecanismo da repressão, que diz respeito a fixação, onde
um componente instintual não se conduz na sequencia dos demais em um caminho
“normal” de acordo com o desenvolvimento, é deixado para trás, num estádio mais
infantil. Na sequencia a repressão assume um processo ativo, e a fixação
constitui um retardamento passivo. Em seguida o que ocorre é o “fracasso da
repressão, da irrupção, do retorno do reprimido”. Que exista uma multiplicidade de
pontos de fixação, tantos quantos forem as pulsões que habitam o sujeito,
devemos assim compreender a multiplicidade de retardamento e do fracasso do
reprimido e seu retorno na paranoia e a formação de sintomas. Assim é
importante a compreensão de que o trabalho dos delírios, a formação delirante é
uma tentativa de restabelecimento, ou seja, um processo de reconstrução. Se ela
será bem sucedida ou não é outra questão. Vale ressaltar que na paranoia, é
possível que após a libido ter sido retirada do objeto, reprimida, retorna ao
sujeito como traços de megalomania, e que “a megalomania pode,
por si mesma, constituir uma paranoia”. O
que vale é o engrandecimento do ego. É um retorno a fase infantil do
narcisismo, “no qual o único
objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego”.
O
mecanismo psíquico na psicose e na psicose paranoica é de uma engenhosidade
semelhante a fortificação de uma cidadela: O inconsciente e o consciente são
cidadelas guardadas por uma censura crítica, um superego. Quando o que acarreta
o relaxamento dessa censura é uma redução patológica da força crítica ou uma
intensificação patológica das excitações inconscientes e o portão de acesso à
motilidade que é a censura crítica permanece aberto, o guardião que é o portão
é subjugado, as excitações inconscientes dominam o pré-consciente e então
controla nossa fala, nossas ações ou forçam a regressão alucinatória e dirigem
o curso do psiquismo. “A esse estado de
coisas damos o nome de psicose”. Lacan
(2008, p. 13) irá nos lembrar no histórico da paranoia que 70% dos doentes dos
manicômios portavam a etiqueta paranoia e que um paranoico era uma pessoa má,
um intolerante, um tipo de mau
humor, orgulho, desconfiança, suscetibilidade e quando era por demais
paranoico, ele começava a delirar. A desconstrução não só em sua nosografia,
mas em sua compreensão mais ampla Lacan o fará ao falar (p.27), “Há uma loucura
necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco de uma
outra forma de loucura”.
Que Freud
tenha nos casos em que analisou buscado relação com as experiências infantis
vivenciadas é fato e Lacan o irá referendar em caracterizar o delírio como
delírio de relações, que há significação, que é possível compreender, como
fenômeno incompreensível que é; Que no fundamento da estrutura paranoica algo
se tornou palavra e que acontece quando alguma coisa do mundo interior, que não
foi primitivamente simbolizada aparece no mundo exterior, então o sujeito, como
ele diz, se vê desarmado, incapaz de juntar as peças de seu quebra-cabeças, ou
seja, integrar o que não foi
simbolizado no real e que acarreta uma desagregação em cadeia. O que aparece é
o delírio, aquilo que do recalque escapa. E é através desse fenômeno intuitivo,
persecutório, que a projeção assume relevância. Que Lacan irá considerar o
inconsciente enquanto ponto de partida, não exclui o ego enquanto primordial,
pois é o que vai (Lacan 2008 p. 171) “manejar a relação com a realidade, de
transformar essa relação, com fins que definem como sendo de defesa”. Essa é a defesa que está na origem da
paranoia sob a forma de alucinação, de delírio. Defesa que se estabelece em
função da rejeição de um significante fundamental, algo do primitivo, de um
primeiro corpo de significantes, que deveria estar no interior e fica no
exterior, é então excluído.
Observação:
As referências bibliográficas serão publicadas com as considerações finais.
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