6 de dezembro de 2015

A compreensão é silênciosa


O que é da compreensão não é a palavra
O que é da palavra não é a compreensão
Fechando a boca
Trancando a porta
Cegando o corte
Desatando o nó
Harmonizando-se à luz
Igualando-se à poeira
Isto chama-se o Mistério Comum (União com o Todo)
Com o qual
Não se pode encontrar aproximação
Não se pode encontrar afastamento
Não se pode encontrar benefício
Não se pode encontrar malefício
Não se pode encontrar valorização
Não se pode encontrar desvalorização
Por isso age como nobre sob o céu                                                                           

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

29 de novembro de 2015

“Escolha” Objetal Primária

Aquilo para o qual Freud considera “complexo de Édipo” trata-se da escolha do objeto sexual. Se essa escolha direciona-se para o pai ou para a mãe ou o que contem de desejo em relação aos dois é uma questão que remete a subjetividade do sujeito. Em um percurso “linear” a menina desejará o objeto de desejo da mãe e o menino o objeto de desejo do pai, mas essa suposta linearidade é muito mais complexa, pois há que se interrogar como essas figuras parentais elaboraram suas escolhas objetais e como se delineiam, em função dessas, os romances familiares, e como a lei simbólica é internalizada pelo sujeito. Freud nos diz que o complexo de Édipo “se encaminhará para a destruição por sua falta de sucesso”, mas o que vemos é que, o que ele designa por sucesso ou insucesso é da ordem do recalque, da lei simbólica, ou seja, as contingências da vida ou o destino que o sujeito dará ao seu desejo. A elaboração da provação edipiana é questão para uma vida ou não. O que a clínica tem revelado é que os conflitos com as figuras parentais tem uma pulsão, que remete ao desejo objetal. Tentar realizar no outro, na escolha do parceiro ou parceira aquilo que não foi possível realizar com sua escolha de desejo primária é sempre uma questão de confronto com o próprio desejo e escolhas. É no contexto das experiências sexuais da infância ou no contexto da “castração” que a escolha será nebulosa e recalcada, revelando tão logo uma sintomatologia de sofrimento inconsciente ou uma pacificação com o próprio desejo. Essa circunstância existencial do desenvolvimento vem num crescendo desde o nascimento e suas perdas do seio materno, a passagem ao controle esfincteriano, do desenvolvimento motor e da fala. Portanto é uma gama de mudanças nem sempre fácil de resinificar; e que o brincar nem sempre vai dar conta dessa complexidade de questões e conflitos. Uma “escolha” objetal primária deve demandar um tempo psíquico para ser elaborada.

Referência
FREUD, S. A DISSOLUÇÃO DO COMPLEXO DE ÉDIPO (1924). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

22 de novembro de 2015

Anotações sobre a Razão

Ao pensar na história da humanidade, pensamos na nossa própria história, nos percursos das ideias e ideais que buscamos construir no sentido da incessante busca de sublimação e evolução. Por certo nossa civilização encontra-se em um momento de interrogações sobre os caminhos seguidos nos últimos séculos. A ciência do pensamento, se é que podemos chamar assim, a filosofia, depara-se hoje com incógnitas sobre a manutenção da vida no planeta. Podemos dizer que o século XX e XXI caracteriza-se pela insegurança quanto à continuidade da vida no planeta, frente ao esgotamento dos recursos naturais. Nos primórdios o homem interrogava sobre a existência de Deus e a vida em outros mundos, a seguir a teologia e a moral ocuparam as especulações racionais e a exegese passou a ser uma forma de esterilizar essas reflexões. Mas a metafísica vem recolocá-las mais distantes das paixões. Se a forma de conhecer os objetos do conhecimento da razão mudou ao longo dos séculos, ora com ênfase na sensibilidade, nos sentidos, ora no intelectualismo, no entendimento, onde os objetos verdadeiros são fruto de uma “intuição de um entendimento puro”, não necessitando dos sentidos. Do empirismo de Aristóteles, a noologia de Platão, do Ser enquanto Ser percorre-se o método naturalista e científico. “O naturalista da razão pura toma por princípio que, por meio da razão comum sem ciência, pode conseguir-se muito melhores resultados, com respeito às questões mais sublimes, que constituem o tema da metafísica, do que pela especulação. Afirma, assim, que se pode determinar mais seguramente a grandeza da lua e a distância a que se encontra da terra pela simples medida visual do que pelos tramites da matemática” (p.673). A grandeza do método cientifico é a via crítica, sistemática, sem cair no dogmatismo ou no cepticismo. Ao olharmos os eventos do mundo atual vemos a balança pender para um lado ora para outro, sem encontrar seu equilíbrio. Então todos os objetos são distanciados pelos extremismos, que se aproximam de ideias delirantes. A razão enquanto categoria do humano não encontra assim a ‘Si’ mesma; percorrendo caminhos obscuros. Por certo ainda não alcançamos experiência da razão pura que prescinda da prática, porque sem a lei e a moral a civilização não se constitui enquanto tal.
Referencia

KANT, Immanuel – CRÍTICA DA RAZÃO PURA ( A História da Razão Pura) – Edição  da Fundação Calouste Gulbenkian – 6ª Edição – Lisboa/2008

8 de novembro de 2015

Freud – Jung: A Psique e suas Fronteiras

Há quase 100 anos esses dois pesquisadores, instigantes e suas interrogações sobre a psique humana, mergulharam suas vidas em um trabalho interminável, como o próprio objeto de estudo. Novamente partilhamos essas duas cartas que falam por si só.

 7 de outubro de 1906, Viena, IX. Berggasse Caro colega,

Sua carta me deu grande prazer. Folgo especialmente em saber que o senhor fez a conversão de Bleuler. Seus escritos já me haviam sugerido que sua aceitação de minha psicologia não se estende a todos os meus pontos de vista sobre a histeria e o problema da sexualidade, mas me atrevo a esperar que, com o passar dos anos, o senhor chegue muito mais perto de mim do que julga possível atualmente. Tendo em vista sua esplendida analise de um caso de neurose obsessiva,' ninguém melhor que o senhor ha de saber quão perfeitamente se oculta o fator sexual e, uma vez descoberto, quão valioso pode ser para nossa compreensão e terapia. Continuo esperando que esse aspecto de minhas investigações venha a se mostrar o mais significativo. Por questão de principio, mas também pelo desagrado que me causa a entonação pessoal, não responderei ao ataque de Aschaffenburg. Desnecessário porem dizer que o julgaria em termos bem mais severos que os seus. No estudo dele nada encontro senão vacuidades alem de uma ignorância invejável dos assuntos que critica. Ele ainda pega em armas contra o método hipnótico, que foi abandonado há dez anos, e nenhuma compreensão demonstra do simbolismo mais simples cuja importância qualquer estudante de linguística ou folclore lhe poderia incutir, já que ele não se dispõe a me dar credito. Como a tantos de nossos sábios motiva-o principalmente a inclinação de reprimir a sexualidade, esse fator incomodo que a boa sociedade não recebe bem. Temos aqui dois mundos antagônicos, e logo será obvio para todos qual se acha em declínio, qual em ascensão. Mesmo assim sei que tenho pela frente uma longa luta e, em virtude de minha idade (50), não acredito muito que chegue a presenciar o fim. Mas meus seguidores o verão, e o que espero, tal como espero que os que forem capazes de vencer a resistência interior a verdade queiram se por sem exceção entre meus seguidores, eliminando do pensamento os últimos vestígios de pusilanimidade. Nada mais sei sobre Aschaffenburg, mas a opinião que esse estudo me deixa a respeito dele e muito pobre. Aguardo ansiosamente seu próximo livro sobre demência precoce. Devo confessar que, sempre que vem a luz uma obra como a sua ou a de Bleuler, sou possuído pela grande e para mim indispensável satisfação de saber que o árduo trabalho de uma vida inteira não foi totalmente inútil.
Sinceramente, Dr. Freud

Burgholzli-Zurique, 23 de outubro de 1906
Caro Professor Freud,

Nesta mesma data tomo a liberdade de lhe remeter outra separata com algumas novas pesquisas sobre psicanálise. Não creio que o ponto de vista “sexual” por mim adotado lhe pareça excessivamente cauteloso. Os críticos, por conseguinte hão de investir contra ele. É possível que minhas reservas quanto as suas concepções tão amplas sejam devidas, como o senhor mesmo notou, a falta de experiência. Mas não lhe parece que há um número de fenômenos fronteiriços que com maior propriedade podem ser considerados em termos do outro impulso básico — a fome? Refiro-me, por exemplo, ao ato de comer, de sugar (predominantemente fome), de beijar (predominantemente sexualidade). A existência simultânea de dois complexos sempre os destina a misturar-se psicologicamente de modo que um deles invariavelmente contem aspectos do outro. Talvez seja apenas isso o que o senhor pretende dizer; nesse caso, eu o interpretei mal, e partilho integralmente de sua opinião. Mesmo assim, no entanto, e bastante assustador o modo positivo como o senhor apresenta suas teorias. Embora correndo o risco de incomodá-lo devo falar-lhe de minha experiência mais recente. Trato no momento, utilizando seu método, de uma histérica. Caso difícil; uma estudante russa de 20 anos, doente há 6. Primeiro trauma entre os 3 e os 4 anos. Viu o irmão mais velho, com as nádegas nuas sendo espancado pelo pai. Impressão forte. Dai para a frente não conseguiu deixar de pensar que tinha defecado na mão do pai. Dos 4 aos 7 anos, tentativas convulsivas de defecar nos próprios pés, da seguinte maneira: sentava-se no chão sobre um dos pés e premia o calcanhar contra o anus, tentando ao mesmo tempo defecar e impedir a defecação. Não raro retinha as fezes por 2 semanas! Ela não sabe como chegou a essa solução peculiar; diz que tudo era completamente instintivo e acompanhado por sentimentos dúbios, misto de horror e prazer. Mais tarde o fenômeno foi substituído por uma masturbação frenética. Eu lhe ficaria extremamente grato se me dissesse em poucas palavras o que pensa dessa história.
Atenciosamente, C. G. Jung

FREUD / JUNG – CORRESPONDÊNCIA COMPLETA - Organizada por William Mcguire - Coleção Psicologia Psicanalítica - Direção de Jaym e Salomão - Coordenação editorial de Pedro Paulo de Sena Madureira - IMAGO EDITORA LTDA. Rio de Janeiro.

5 de novembro de 2015

Pensar o Movimento Psíquico

O artigo “Sobre Psicanálise” escrito por Freud para o Congresso Médico Australasiano, contém uma articulação dos conceitos que norteia a psicanálise, que vai desde a compreensão dos ‘sintomas’ como resíduos de ‘reminiscências’ de experiências traumáticas, que foram ‘esquecidas’ no profundo ‘inconsciente’, ‘reprimidas’, não foram reelaboradas, liberando sua carga patológica quando flui pelo ‘consciente’ ou em seu trajeto nos sintomas do corpo. Mas a ‘associação livre’ permite a articulação do pensamento e da fala pelas suas representações. Na compreensão de que os processos psíquicos são dinâmicos, pois sua condução psiquismo-corpo e suas enervações são ininterruptas. A técnica da interpretação permite que o sujeito se interrogue ao invés de interrogar o outro e encontre como as “dissociações psíquicas”, se articulam com a repressão. O que “aparece” são os sintomas, como “produtos finais dos conflitos que levam a repressão, sejam como substitutos, como conciliações com o reprimido ou como formações reativas a repressão. Os sintomas apresentam destinos diversos, de acordo com o desejo do sujeito e o destino que este dá a ele. Se os infantilismos apresentam uma disposição a neurose, as obsessões à psicose e as perversões apresentam inibições de desenvolvimento assimétricos, é pensar como as diversas representações podem ser compreendidas como algo normal e apresenta-se como perverso para um dos envolvidos, pois aqueles não farão conversão, os sintomas no corpo. Por certo que as exigências culturais feitas à humanidade, vão exigir dos sujeitos sacrifícios maiores ou menores de renuncia, de acordo com a vida instintual, a subjetividade e quanto cada um consegue simbolizar. “O instinto sexual possui em alto grau a capacidade de ser desviado dos objetivos sexuais diretos e ser dirigido no sentido de metas mais elevadas, que não são mais sexuais (‘sublimação’). O instinto fica assim capacitado a efetuar contribuições muito importantes às realizações sociais e artísticas da humanidade”. Como o perfeito equilíbrio mental é tarefa da metafísica e exige sacrifícios extenuantes, a vida mental vai apresentar em sua estrutura diversos traços neuróticos, psicóticos e perversos. Saber quais são predominantes, se alternam ou se isolam depende do grau de normalidade em evolução. Como os pensamentos são disfarçados pelo imaginário, pelas fantasias, pelos significantes e pela repressão, desvelar as verdades internas de cada sujeito, exige grande esforço pessoal, muito tempo e porque não dizer esforço moral e intelectual.

Referências
FREUD, S. SOBRE A PSICANÁLISE (1913 [1911]). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

30 de outubro de 2015

Lições de Psicanálise II

"Também a psicologia é uma ciência natural. O que mais pode ser? Mas seu caso é diferente. Nem todos são bastante audazes para emitir julgamento sobre assuntos físicos, mas todos — tanto o filósofo quanto o homem da rua — têm sua opinião sobre questões psicológicas e se comportam como se fossem, pelo menos, psicólogos amateurs. E agora vem a coisa notável. Todos — ou quase todos — concordaram que o que é psíquico tem realmente uma qualidade comum na qual sua essência se expressa, a saber, a qualidade de ser consciente — única, indescritível, mas sem necessitar de descrição. Tudo o que é consciente, dizem eles, é psíquico, e, inversamente, tudo o que é psíquico é consciente; isso é autoevidente e contradizê-lo é absurdo. Não se pode dizer que essa decisão lance muita luz sobre a natureza do psíquico, pois a consciência é um dos fatos fundamentais de nossa vida e nossas pesquisas dão contra ele como contra uma parede lisa, e não podem encontrar qualquer caminho além. Ademais, a igualação do que é mental ao que é consciente tem o resultado incômodo de divorciar os processos psíquicos do contexto geral dos acontecimentos no universo e de colocá-los em completo contraste com todos os outros. Mas isso não serviria, uma vez que não se pode desprezar por muito tempo o fato de que os fenômenos psíquicos são em alto grau dependentes das influências somáticas e o de que, por seu lado, possuem os mais poderosos efeitos sobre os processos somáticos. Se alguma vez o pensamento humano se encontrou num impasse, foi aqui. Para descobrir uma saída, os filósofos, pelo menos, foram obrigados a presumir que havia processos orgânicos paralelos aos processos psíquicos conscientes, a eles relacionados de uma maneira difícil de explicar, que atuavam como intermediários nas relações recíprocas entre ‘corpo e mente’, e que serviam para reinserir o psíquico na contextura da vida”.
Referência
FREUD, S. ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

22 de outubro de 2015

Onde há transcendência, a morte não existe


Nascer na vida, entrar na morte
Dos que pertencem ao nascimento, entre dez, há três
Dos que pertencem à morte, entre dez há três
Dos homens vivos
Os que se movem para a terra da morte, entre dez, há três
E qual é a causa?
Suas vidas são vividas em excesso
Ouvi dizer que o bom cultivador da vida
Viaja pela terra e não se confronta com rinocerontes nem tigres
E atravessa um exército sem armadura nem armas
Os rinocerontes não têm onde enfiar o chifre
Os tigres não têm onde cravar as garras
E as armas não têm onde alojar as lâminas
E qual a causa?
Nele não existe lugar para a morte
TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

17 de outubro de 2015

A Transferência nas Relações Afetivas

A relação com o outro, esse outro um “sujeito suposto saber”, é permeada de um saber de emoções, percepções, julgamentos, sentimentos, desejos, pré-concebidos oriundos de marcas mnêmicas. Enamorar-se de alguém é algo que ao longo da história humana tem passado por mudanças culturais, que nem sempre pode significar uma evolução da civilização. As relações fluidas, online, descartáveis, os milhares de “amigos”, o encontro de parceiros, parceiras através das redes, a vida privada exposta, revelam novas representações subjetivas, fazendo com que os contatos pessoais sejam também, descartáveis, superficiais, mercadológicos e baseados em relações de poder. Remontar essas relações estereotipadas requer percorrer a história da própria vida. Mas nem sempre é necessária a vida online. O trabalho, também, sempre foi uma forma de estabelecer essas mesmas relações do mundo ‘civilizado’. Um traço mostra-se sempre presente: um nível de autoestima baixo, abusos físicos e psicológicos, escolhas de objetos primários patológicos, um narcisismo primário, que muitas vezes possui seu contraponto nas relações de poder. Lidar com o cotidiano da vida e seu aprofundamento, na medida em que as “circunstancias externas e a natureza dos objetos” mudam, faz com que o sujeito torna-se incapaz de respostas assertivas a experiências recentes, possibilitando relações transferenciais negativas. As representações dos objetos de afetos, com grande carga de energia, possibilitam as transferências como uma imagem que se reproduz a partir não só do consciente, mas principalmente do inconsciente.

A transferência é mais intensa em todas as relações onde os objetos representados são objetos de desejo proibidos, frustrados, não realizados, não elaborados. É então, que se estabelece a questão do lugar e da função. O destino que o sujeito dá a trilogia em que é imerso, como primeira prova do destino: lugar e função pai, mãe, filho, a transferência vem a se estabelecer como uma poderosa resistência, que dificulta o sujeito repensar suas relações. Na análise a transferência é um recurso de cura, mas pode tornar-se uma resistência. A transferência como resistência revela que o objeto ao qual é dirigido o afeto, é um objeto de representação, que não possui correspondência. E onde surge a resistência é mais trabalhoso o mecanismo de construção das associações. A transferência imprime uma deformação, na visão que o sujeito possui de si mesmo, em função não só da substituição do objeto, mas como gostaria que o outro o percebesse, ou seja, como o sujeito se vê em seu narcisismo, como ele desejaria ser ou como desejaria ser percebido pelo outro.  É como se o desejo do sujeito fosse que o outro percebesse sua imagem no espelho e não ele mesmo.

Esse deslocamento de objeto pode dar-se através de um afeto positivo ou negativo, hostil, ou alternar entre um e outro. A fonte desses deslocamentos e das ambivalências, que os caracterizam, está em experiências “esquecidas” no profundo inconsciente e que dificilmente são acessíveis. Em termos de estrutura vamos encontrar as transferências negativas na paranoia, no narcisismo compulsivo e na perversão. Não é tarefa fácil, manter-se “imparcial” diante das transferências negativas. Quando a transferência é positiva há uma relação de química prazerosa. No dia a dia das relações, em geral há sempre uma transferência. Identificar que transferência é essa, sua qualidade e intensidade, o que há de saudável ou patológico eis a questão. Nas relações profissionais isso é um desafio e na relação analítica é um ponto de interpretação e trabalho, onde a ética deve prevalecer sempre, e a prioridade é o tratamento do paciente. No trabalho analítico “não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte, irreal e trabalho da resistência”. O paciente “abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está” curado. O fato é que “o tratamento analítico se baseia na sinceridade, e neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor ético”. A neutralidade, a ética e a questão técnica é então importante para evitar a contratransferência.

Manter a imparcialidade, a ausência implicada, para evitar uma atuação de (“acting out”), ou seja, “em repetir na vida real o que deveria apenas ter lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos” é tarefa que exige experiência, técnica e ética. Compreender os afetos das transferências é tarefa de autoconhecimento, que requer renúncias e aprendizados. Não só nas relações analíticas, mas nas questões do amor genuíno vamos encontrar também as resistências, que são representadas nos conflitos, a serem superados pela compreensão dos fundamentos e renúncia ao egoísmo. Para que o amor não seja transferencial é necessário que todas as questões da existência do sujeito, tenham sido elaboradas, reinterpretadas, livre dos instintos primitivos, do narcisismo primário e haja uma similitude de essência elevada, que transpõe o corpo. Um amor que nunca pode ser contaminado pelo ódio, inveja, disputas, ressentimentos, interesses materiais. No que diz respeito à transferência nos romances que são socialmente inaceitáveis, por ferir questões éticas, como lealdade e fidelidade, que são condutas culturais, essas transferência diz respeito a transgressões muito comuns na sociedade em que vivemos. Então compreender as transferências que existe em todas as relações é compreender o lugar e a função de cada sujeito na vida, para que o pai não ocupe a função de mãe ou de filho, a mãe não ocupe a função de pai ou de filho, o filho não ocupe a função de pai ou de mãe, o chefe não ocupe o lugar de pai ou mãe e os colegas de irmãos ou familiares. As transferências são transferências de substitutos nem sempre positivos e requer elaboração para que não se constitua em resistência e representações patológicas de objetos.

Referências
FREUD, S. A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA (1912). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE III) (1915 [1914]). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

11 de outubro de 2015

Lições de Psicanálise I

“A psicanálise constitui uma parte da ciência mental da psicologia. Também é descrita como ‘psicologia profunda’; mais tarde, descobriremos por quê. Se alguém perguntar o que realmente significa ‘o psíquico’, será fácil responder pela enumeração de seus constituintes: nossas percepções, ideias, lembranças, sentimentos e atos volitivos — todos fazem parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais longe e perguntar se não existe alguma qualidade comum, possuída por todos esses processos, que torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as pessoas às vezes dizem da essência do psíquico, então será mais difícil fornecer uma resposta”.
“Se uma pergunta análoga tivesse sido feita a um físico (quanto à natureza da eletricidade, por exemplo), a resposta deste, até muito recentemente, teria sido: ‘Para o fim de explicar certos fenômenos, presumimos a existência de forças elétricas que estão presentes nas coisas e que delas emanam. Estudamos esses fenômenos, descobrimos as leis que os governam e até mesmo colocamo-los em uso prático. Isso nos satisfaz provisoriamente. Não conhecemos a natureza da eletricidade. Talvez possamos descobri-la mais tarde, na medida em que nosso trabalho progrida. Há que admitir que aquilo que dela ignoramos é precisamente a parte mais importante e interessante de todo o assunto, mas, no momento, isso não nos preocupa. É simplesmente como as coisas acontecem nas ciências naturais”.

Referências
FREUD, S. ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

4 de outubro de 2015

Vidas Fecundas

“Aceitar nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a criar com os outros, relações sem base no poder”.

O discurso de Freud perante a Sociedade dos Bnai Brith (1941 [1926]) “foi lido em nome de Freud numa reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio de 1926, em honra ao seu septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito pelo seu médico, o professor Ludwig Braun”.
“Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) são uma ordem que representa os interesses judeus — culturais, intelectuais e caritativos. Originalmente fundada nos Estados Unidos em meados do século XIX, tem lojas filiadas em muitas partes do mundo. Como se verá adiante, Freud filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e durante muitos anos foi frequentador assíduo de suas reuniões, realizadas em terças-feiras alternadas. De tempos a tempos ele próprio pronunciou conferências ali, havendo os temas de algumas delas sido registrados”.

“Ilustríssimo Grão Presidente, ilustríssimos Presidentes, caros Irmãos, — Agradeço-vos as honrarias que me prestastes hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de minha própria voz. Ouvistes um dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho científico; mas é difícil formar um julgamento sobre tais coisas e por muito tempo ainda ele não pode ser alcançado com segurança. Permiti-me acrescentar algo ao que foi dito por aquele que é tanto meu amigo como o médico que vela por mim. Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos e o que procurei de vós”.
“Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira compreensão interna (insight) das profundezas da vida dos instintos humanos; eu vira certas coisas que eram tranquilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos; senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de encontrar um círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso, apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam ser encontrados”.
“O fato de vós serdes judeus só me poderia ser agradável, pois eu próprio sou judeu, e sempre me parecera não somente indigno como positivamente insensato negar esse fato. O que me ligava ao povo judeu não era (envergonho-me de admitir) nem a fé nem o orgulho nacional, pois sempre fui um descrente e fui educado sem nenhuma religião, embora não sem respeito pelo que se denomina de padrões ‘éticos’ da civilização humana. Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência dos povos entre os quais nós judeus vivemos. Mas restavam muitas outras coisas que tornavam a atração do mundo judeu e dos judeus irresistível — muitas forças emocionais obscuras, que eram mais poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida consciência de identidade interna, a reserva segura de uma construção mental comum. E além disso havia uma percepção de que era somente à minha natureza judaica que eu devia duas características que se haviam tornado indispensáveis para mim no difícil curso de minha vida. Por ser judeu encontrei-me livre de muitos preconceitos que restringiam outros no uso de seu intelecto, e como Judeu estava preparado para aliar-me à Oposição e passar sem consenso à maioria compacta”.
“Assim foi que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses humanitários e nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à nossa sociedade. Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o meu primeiro auditório”.
“Durante cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante longo para que eu frequentasse vossas reuniões, e logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como o de hoje”.
“Não posso dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa posso assegurar-vos — que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses anos como por hoje”.
Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud

Esse revelador discurso de Freud aos “Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) uma ordem que representava os interesses judeus – Culturais, intelectuais e caritativos, revela que para todos os homens pensar e está inserido nas discussões culturais, intelectuais e na prática da caridade é fundamental para suas  existências. É assim que, sempre será digno de nota e lembrança o sequestro e massacre dos sete monges Trapistas de Atlas, na Argélia em 1996, que em breve fará 20 anos e não pode ser esquecido e tão brilhantemente demonstrado no filme “Homens e Deuses” (Des Hommes ET dês Dieux, 2010). A necessidade de servir ao outro, de exercer a caridade se revela cada vez mais imperativo e urgente em cada momento da vida. O mundo da razão não pode viver sem a fé, e é a vida pulsante que testemunha isso. Todos os homens de ciência e com Freud não seria diferente, rendem-se a esse imperativo da vida, sejam em organizações, sociedades, ou formas de expressão, aprender a viver com o outro, é tarefa difícil, extenuante, desafiante, mas acima de tudo gratificante e libertadora. Alguns textos do filme somam-se ao discurso de Freud. Aqui os reproduzimos pela sua permanente importância:
“Aceitar nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a criar com os outros, relações sem base no poder. Reconhecendo a minha fraqueza posso aceitar a dos outros e ver nela um apelo a carregá-la, fazê-la minha, imitando Cristo. Tal atitude nos transforma para a missão. A fraqueza em si não é uma virtude, mas é a expressão de uma realidade fundamental do nosso ser, que deve ser constantemente moldado pela fé, a esperança e o amor. A fraqueza dos apóstolos é como a de Cristo enraizada na força do mistério da páscoa e da força do espírito. Ela não é passividade. Ela pressupõe muita coragem e a lutas pela justiça e pela verdade ao denunciar a ilusória sedução da força e do poder”
“Jesus Cristo nos convida a nascer. Nossa identidade de homem segue de nascimento em nascimento. E de nascimento em nascimento vamos acabar nós mesmos trazendo ao mundo esse Filho de Deus que nós somos, porque a reencarnação para nós é permitir que a realidade filial de Jesus se reencarne na nossa humanidade. O mistério da reencarnação abriga, aquilo que nós vamos viver. É assim que fica enraizado tudo o que já vivemos aqui, tudo o que vamos viver ainda”. “As flores do campo não se movem para achar os raios de sol. É Deus que se encarrega de fecundá-las, onde quer que estejam”.

Referências
FREUD, S. DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH (1941 [1926]). Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.

Almas Perfumadas


Quando penso em você,
sinto essa plenitude, em sua alma,
capaz de amar com a força,
a segurança e proteção,
com a autonomia,
que deixa minh'alma,
livre para voar.
Capaz de amar com a suavidade,
a leveza e fragilidade do menino,
que um dia  foi,
e que o habita em sua madureza.
Essa força masculina nessa alma pura,
que mais do que uma alma gêmea,
é uma alma similar, pois sente
minh'alma vibrar na sua, na mesma frequência.
Essa forma de ser menino, em sua leveza
amorosa, lúdica e em sua força espiritual,
traz-me a certeza desse encontro na eternidade.
Myriam’aya

30 de setembro de 2015

Anotações sobre a Culpa

Nos tempos atuais, em que não escrevemos mais cartas, e que as redes sociais ocupam um espaço de escrita, onde “o pessoal” é exposto, sem que o sujeito resguarde sua privacidade, é o sujeito egoico, narcísico, que se expande, revelando seu narcisismo primário impossibilitado de diferenciar o público do privado. Assim as cartas que Freud escreveu a Fliess teve uma importância fundamental nesse sentido, não só pela troca de reflexões cientificas, mas principalmente pessoais.  Cartas essas que foram fundamentais na autoanálise de Freud abriu um novo caminho ao conhecimento do psiquismo humano. Em um trecho dessas cartas a número 66 de 7 de julho de 1897 Freud escreve algo muito importante sobre as lembranças e que a defesa dessas cria estruturas psíquicas superiores: “Pois bem, vejo que a defesa contra as lembranças não impede que estas deem origem a estruturas psíquicas superiores, que persistem por algum tempo e, depois, são elas mesmas submetidas à defesa. Esta, porém, é de um tipo específico mais elevado — precisamente como nos sonhos, que contêm in nuce [numa casca de noz] a psicologia das neuroses, muito genericamente. O que temos diante de nós são falsificações da memória e fantasias — estas referentes ao passado ou ao futuro. Conheço mais ou menos as leis segundo as quais se agrupam essas estruturas e os motivos pelos quais são mais fortes do que as lembranças verdadeiras;” Podemos supor que uma das estruturas psíquicas superiores, importante, é o esquecimento. Claro que existem outras como a condensação, as representações, os “saltos” de marcas mnêmicas, que se liga a outras, que também estarão submetidas à defesa. O psiquismo luta para que nada transborde que venha a causar dor, culpa. Mas como o reprimido sempre volta, porque a lei do universo é o equilíbrio, e isso passa pela verdade do sujeito e aquilo que ele guardou no seu mais recôndito Ser, vai está sempre demandando o retorno da verdade, porque o universo não funciona com mentiras, então o caminho de equilíbrio do sujeito é sempre a busca da verdade. Verdades essas que em um primeiro instante pode apresentar-se veladas, repletas de marcas mnêmicas. As “verdades” da história do sujeito traz sempre muita dor e a primeira que se coloca nesse caminho de auto-reconstrução é o sentimento ou afeto a que se denomina “culpa”, que é da ordem da subjetividade de um significante, que muitas vezes não é possível localizar no tempo. Há que se perguntar: culpa de que? Isso implica em um sentimento de angústia, um incômodo psíquico, que remonta a memórias, nem sempre consciente de ter agido de determinada forma que prejudicou, lesionou ou teve participação ativa, mesmo que por omissão no sofrimento do outro. Então temos que pensar que esse afeto remonta a um passado, que o sujeito não se lembra, pois nem sempre é possível localizar os fatos na existência. É de algo, que muitas vezes não se sabe de que, mesmo que existam comportamentos repetitivos que possam sinalizar a origem desse afeto. Da passagem ao ato perverso pelo prazer, ambição, arrogância, poder, segue-se o ódio, o ressentimento, a mágoa, o arrependimento e a culpa. Por isso Freud pensa a perversão como o contraponto da neurose. Nessa sequência, autoperdão é sempre o mais difícil e demorado, porque requer humildade e um sentimento amoroso que iria se interpor a resinificar o sofrimento, que “começou” em um ato perverso. Fala-se muito que “não é possível voltar atrás e mudar o que houve, mas que é possível construir um futuro diferente”. Mas um futuro diferente não se constrói com ódio, ressentimento, remorso e culpa. Então muitas vezes é preciso “voltar” e “consertar” através de uma mudança que já esteja em andamento aquilo no qual o sujeito esteve implicado. É sua reforma moral, que começa com o sentimento de culpa, passa pela humildade e reconhecimento do Ser falível, faltante, imperfeito, que muito prejuízo psíquico pode ter causado, mas que sempre é tempo de começar um novo caminho. Enquanto estamos a caminho o perdão é a única porta possível de passagem a um outro ato, que não o perverso, mas ao amoroso.

Referência
FREUD, S. CARTA 66 - 7 de julho de 1897. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.

19 de setembro de 2015

O Viajante


“Terras estranhas e separação, eis o destino do viajante".
“Quando um homem está viajando e é, portanto, estrangeiro, deve evitar ser rude ou arrogante”.
“Ele não dispõe de um grande círculo de relações e não deve, portanto, se vangloriar”.
“É necessário ser cauteloso e reservado; desse modo evitará o mal”.
“Se ele for atencioso com os outros, terá sucesso”.
“O viajante não tem morada fixa, seu lar é a estrada”.
“Por isso ele deve procurar se manter íntegro e firme, detendo-se apenas em lugares apropriados e tendo contato somente com boas pessoas”.
“Ele então, encontrará boa fortuna e poderá seguir seu caminho sem problemas”.
I Ching – O Livro das Mutações

11 de setembro de 2015

A “substancia viva” que nos habita

Quando Freud pensou nos protozoários, como indivíduos com um enigma de eternidade, pela sua composição, e os seres evoluídos com pulsão de morte, estava, talvez sem o saber, falando que os seres evoluídos caminham para a morte porque são habitados pelos seres unicelulares. Então se a morte dá ao homem a eternidade é porque este contém em si algo que está “além do princípio do prazer”. O princípio do prazer-desprazer é como o equilíbrio entre a vida e a morte, por isso a compulsão a repetição é um “ponto de partida” nesse equilíbrio e ao mesmo tempo ao funcionamento psíquico condicionado. Se um instinto é um impulso determinado hereditariamente, ele não é somente inerente à vida orgânica, mas a vida psíquica também, que tende a restaurar estados psíquicos anteriores. Assim é possível falar não somente em uma elasticidade orgânica, mas uma elasticidade psíquica, a resiliência. A vida orgânica é um espelho da alma. Portanto “vemos como o germe de um animal vivo é obrigado, no curso de sua evolução, a recapitular (mesmo se de maneira transitória e abreviada) as estruturas de todas as formas das quais se originou, em vez de avançar rapidamente, pela via mais curta, até sua forma final. Esse comportamento é, apenas em grau muito tênue, atribuível a causas mecânicas, e, por conseguinte, a explicação histórica não pode ser desprezada. Assim também o poder de regenerar um órgão perdido, fazendo crescer de novo um outro exatamente semelhante, estende-se bem acima do reino animal” (p.48). Dessa forma a vida está sempre se refazendo nascendo e morrendo, fluindo em um movimento de equilíbrio. As bactérias que um dia consumirá nosso organismo já habitam dentro de nós desde o nascimento.

Não é possível desvincular nosso passado do passado da terra e do universo. E Freud vai afirmar isso quando diz que “o que deixou sua marca sobre o desenvolvimento dos organismos deve ter sido a história da Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol” (p.48). Assim há muito de repetição em nossa psique. Essa “necessidade” de retorno diz respeito a uma possível experiência primeira saudável ou a nossa queda aos instintos primitivos, que demanda elaboração. Essa luta interna que todos os organismos fizeram em sua evolução entre vida e morte diz respeito a uma lei do universo e da natureza, que tudo nasce, morre e nasce. A semente de uma árvore não é a árvore, e ao mesmo tempo é ela modificada. Como até o presente momento a ciência debate se a vida surgiu no “caldo primitivo” ou se veio na “poeira estelar” é questão que ainda demanda séculos. O objetivo é sempre a vida, que está “além do princípio do prazer”. “Daí surgir a situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda a sua energia contra fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida, (que é morrer)* por uma espécie de curto-circuito” (p.50), o que é contraditório com “além do princípio do prazer”. O enigma da vida e morte é uma interrogação para todos, e Freud acalenta sua angústia com a afirmação de que “a totalidade do caminho do desenvolvimento para a morte natural não é percorrido por todas as entidades elementares que compõem o complicado corpo de um dos organismos mais elevados. Algumas delas, as células germinais, provavelmente retêm a estrutura original da matéria viva e, após certo tempo, com todo o seu complemento de disposições instintuais herdadas e recentemente adquiridas, separam-se do organismo como um todo. Essas duas características podem ser exatamente aquilo que as capacita a ter uma existência independente. Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se, isto é, a repetir o desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais uma vez uma parte de sua substância leva sua evolução a um término, ao passo que outra parte reverte novamente, como um germe residual novo, ao início do processo de desenvolvimento. Essas células germinais, portanto, trabalham contra a morte da substância viva e têm êxito em conseguir para ela o que só podemos encarar como uma imortalidade potencial, ainda que isso possa significar nada mais do que um alongamento da estrada para a morte. Temos de considerar como significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da célula germinal ser reforçada, ou só tornada possível, se ela fundir-se com outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela” (p.50-51). Nesse trecho o artigo reforça a ideia de um princípio ativo, uma substancia viva, composto de uma energia que habita o corpo humano e que sobrevive a ele, na concepção de eternidade, pois, ao mesmo tempo em que evolui e termina, outra parte evolui e continua.

Por certo que em todos os revezes do homem no planeta, entre avanços e recuos, há em sua maioria uma necessidade de evoluir, de realização intelectual e “sublimação ética” e, portanto moral. Muitas atrocidades têm sido cometidas na história humana entre os homens. Mas há sempre um instinto, uma pulsão, uma energia para a sublimação da alma, em contraposição a instintos primitivos. Essas cargas de energia contrárias estarão em luta, onde os instintos para sublimação terão que ser maiores, para que a compulsão a repetição, passe a se dar com um fluir contínuo de energia. Se o corpo em seu incessante renovar de células aponta uma questão de imortalidade é porque como diz Fliess (1906) em “sua morte estão vinculados à conclusão de períodos fixos, os quais expressam a dependência de dois tipos de substância viva (um masculino e outro feminino) quanto ao ano solar” (p.55). A concepção biológica de imortalidade se dá pela compreensão através das células germinais, seu plasma germinal e as forças que operam nele, e por ser um fluido traz uma herança de renovação da vida.

A vida e morte na terra são uma adaptação e uma evolução dos seres multicelulares. Esse ciclo, morrer e viver são o ciclo corpo e plasma. Se a imortalidade dos protozoários pode ser experimentalmente demonstrável na medida em que é introduzido em seu fluido nutrientes enriquecedores, a imortalidade dos seres multicelulares diz respeito ao plasma, e a morte ao nível de toxinas que deterioram o corpo. “Nesse ponto, bem pode surgir em nosso espírito a dúvida quanto, a saber, se servimos a algum objetivo ao tentar solucionar o problema da morte natural a partir do estudo dos protozoários. A organização primitiva dessas criaturas pode ocultar-nos condições importantes que, embora de fato presentes nelas também, só se tornam visíveis nos animais superiores, quando podem encontrar expressão morfológica. E, se abandonarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos o dinâmico, torna-se-nos completamente indiferente poder demonstrar se a morte natural ocorre ou não nos protozoários. A substância que posteriormente é reconhecida como imortal, neles não se separou ainda da mortal” (p. 59-60). Se no humano a substancia imortal separou-se da mortal, o corpo, então é possível acreditar que a morte, pode fazer parte do ciclo da vida, e o desejo de viver está ligada a quantidade de energia que circunda o ser humano. Quando as descobertas cientificas aprofundarem as pesquisas sobre o plasma, que no momento são restritas ao plasma sanguíneo e não a quantidade de energia que o compõe, ao plasma que compõe as células, continuaremos no campo da hipótese, quanto a pulsão de vida e morte.

Essa pulsão de vida remonta aos primórdios da humanidade e torna-se uma provação, quando a energia é direcionada em função do instinto sexual. Então é importante remontar na história a hipótese de como “Platão colocou na boca de Aristófanes no Symposium e que trata não apenas da origem do instinto sexual, mas também da mais importante de suas variações em relação ao objeto. ‘A natureza humana original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos eram originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o homem, a mulher, e a união dos dois (…)’ Tudo nesses homens primevos era duplo: tinham quatro mãos e quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá-los em dois, ‘como uma sorva que é dividida em duas metades para fazer conserva’. Depois de feita a divisão, ‘as duas partes do homem, cada uma desejando sua outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por fundir-se” (p.68). Os estudos apontam que é possível que Platão remontasse esses escritos aos Upanishads. “Assim a passagem encontrada no “Brihadâranyaka-upanhishad, onde a origem do mundo a partir do Atman (o Eu, ou Ego) é assim descrita: “Mas não sentiu deleite. Assim também um homem que está solitário não sente deleite. Desejou ter um segundo. Era um homem tão grande quanto marido e mulher juntos. Fez então o seu Eu tombar em dois e surgiram então esposo e esposa. Assim Yagñavalkya disse “Nós somos assim (cada um de nós) como a metade de uma concha”. E dessa maneira o vazio que havia foi preenchido pela esposa” (p.68). O elemento de verdade que possivelmente Platão viu nesses escritos indianos foi a divisão da substancia viva do corpo.

A substancia viva, essa energia está vinculada ao princípio da vida em construção de sua identidade, e que está “além do princípio do prazer”. Mas essa construção passa por vivências, passagens de sofrimentos. Esses sofrimentos e a energia deles descartada pode libertar o “aparelho mental de excitações”, primárias, do começo da vida mental, e outras sequenciais, secundárias, experimentando, assim, uma sensação de alivio. Nossa consciência e nosso superego são vigilantes dedicados. Então o prazer, o desprazer e a tensão interna, quando pressionam por revelar-se, passa pela censura, com inúmeros véus de significantes até serem elaborados novamente.
*Grifos Nossos
         
Referência
FREUD, S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920). Obras Completas de Psicanálise - volume XVIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

7 de setembro de 2015

“o princípio do prazer” e o tempo

Para o inconsciente e seus processos mentais, o tempo, como o compreendemos não existe. Os eventos mentais não são ordenados temporalmente, não há sequencia de eventos no tempo. O tempo só pode alterá-los através da reflexão interna, que permita se implicar, “responsabilizar-se” no sentido do autoconhecimento, mesmo bombardeado pelos mais diversos estímulos interno e externos. Em relação ao processo da consciência, desde o início de sua formação o córtex recebe informações do interior e do exterior. “No sentido do interior, não pode haver esse escudo; as excitações das camadas mais profundas estendem-se para o sistema diretamente e em quantidade não reduzida, até onde algumas de suas características dão origem a sentimentos da série prazer-desprazer” (p.39). É o processo de formação de memória. A arquitetura psíquica é tão perfeita que os sentimentos de prazer e desprazer internos predominam, sobre os sentimentos externos e se esses sentimentos intensos forem de desprazer há uma inversão como se esses sentimentos fossem externos, viessem do Outro. Assim o Outro como escudo é o mecanismo de defesa que se chama “projeção”, esse mecanismo é o responsável por processos psíquicos patológicos, pois o sujeito não se implica consigo mesmo.

Os traumas são inerentes à vida e habitam o inconsciente. Mas uma vez originados no mundo externo, necessitam ultrapassar uma barreira de defesa para que o sofrimento, os sintomas possam emergir e revelar-se no comportamento e no corpo construindo um vínculo, que permita ao sujeito dar outros significados, que retorna da periferia ao núcleo dos estímulos internos. Para que esse mecanismo de “retorno”, modificado, aconteça é necessário uma carga maior de energia, que é captada de todos os sistemas psíquicos na possibilidade de selar uma possível ruptura, bloqueando o sofrimento. Assim a energia que flui necessita de descarga e assim entrar em repouso. Então o trauma psíquico é consequência de uma ruptura no escudo psíquico protetor dos estímulos. O susto é a baixa energia na recepção dos estímulos. “O fato de a camada cortical que recebe os estímulos achar-se sem qualquer escudo protetor contra as excitações provindas do interior deve ter como resultado que essas últimas transmissões de estímulos possuam uma preponderância em importância econômica e amiúde ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses traumáticas. As mais abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito como os ‘instintos’ do organismo, os representantes de todas as forças que se originam no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica” (p.45). O fato dos estímulos internos possuírem uma força instintual capaz de formar sintomas, independente do princípio do prazer, e do princípio de realidade, desencadeando a compulsão à repetição é uma forma de retomar o princípio de prazer, é a re-experiência de algo que foi importante, de outra forma, que possa ser resinificada.   

Referência
FREUD, S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920). Obras Completas de Psicanálise - volume XVIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

2 de setembro de 2015

“O princípio do prazer” e as Barreiras

O retorno do reprimido, pela compulsão a repetição, apesar de apresentar-se como prazer, ao contato com a realidade sob comando do superego, assume sua essência que é o desprazer, pois refere-se a impulsos instintuais reprimidos e que precisam ser drenados. O que é interessante, por demandar cura, é que mesmo as experiências dolorosas, destituídas de prazer, estão submetidas à compulsão a repetição, como via, a ser interpretadas e renunciadas em seu processo de cura. A primazia da vida passa por essa repetição, por esse retorno. Se essa compulsão a repetição conflui em uma compulsão do destino, de uma história, é porque não foi esgotada, exaurida em sua energia, possibilitando novos significados. Então as percepções do mundo exterior, as vivências, as falas, os sentimentos, encontram ressonâncias nesses resíduos mnêmicos. É dessa forma que assume importância pensar em um sistema pré-consciente, que fica em uma suposta ausência, mas também no comando, possui recursos de extensão, que está atenta às marcas mnêmicas, embora em sua maioria estas não acessem a consciência.

Quando uma lembrança torna-se consciente, pode deixar atrás de si um traço de memória em seu intrincado sistema, por onde passam as excitações que recebem, como representação. O que faz uma lembrança deixar atrás de si um traço de memória ou não ainda é uma incógnita. Como o pensamento é a essência da alma, a consciência surge como uma apropriação de si mesmo. A especulação sobre a localização da consciência passa pelos processos excitatórios. É como se algo tivesse, constantemente, que estimular determinado campo do pensamento para que fosse possível a manutenção da consciência. Freud descreve isso da seguinte forma: “o sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece um derivado da camada superficial primitiva do organismo e pode ter herdado algumas de suas propriedades essenciais. Seria então fácil supor que, como resultado do impacto incessante de estímulos externos sobre a superfície da vesícula, sua substância, até uma certa profundidade, pode ter sido permanentemente modificada, de maneira que os processos excitatórios nela seguem um curso diferente do seguido nas camadas mais profundas. Formar-se-ia então uma crosta que acabaria por ficar tão inteiramente ‘calcinada’ pela estimulação, que apresentaria as condições mais favoráveis possíveis para a recepção de estímulos e se tornaria incapaz de qualquer outra modificação. Em termos do sistema Consciente. Isso significa que seus elementos não poderiam mais experimentar novas modificações permanentes pela passagem da excitação, porque já teriam sido modificados, a esse respeito, até o ponto mais amplo possível; agora, contudo, se teriam tornado capazes de dar origem à consciência. É possível formar várias ideias, que não podem, de momento, ser verificadas, quanto à natureza dessa modificação da substância e do processo excitatório. Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para outro, a excitação tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência assim alcançada que deixa um traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação” (p.37). A hipótese orgânica aqui, é que, essa camada interna de tão calcinada, seria mais receptiva aos estímulos, formando a consciência, como um escudo protetor. Mas mesmo na consciência, que não é um órgão, haverá também uma resistência psíquica, para aquilo que é insuportável para o sujeito, ou que é difícil elaborar.

Quando pensamos em como o corpo humano constrói a si mesmo, em sua pulsão, vida e morte temos “a vesícula viva, com sua camada cortical receptiva. Esse pequeno fragmento de substância viva acha-se suspenso no meio de um mundo externo carregado com as mais poderosas energias, e seria morto pela estimulação delas emanadas, se não dispusesse de um escudo protetor contra os estímulos. Ele adquire esse escudo da seguinte maneira: sua superfície mais externa deixa de ter a estrutura apropriada à matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e, daí por diante, funciona como um envoltório ou membrana especial, resistente aos estímulos. Em consequência disso, as energias do mundo externo só podem passar para as camadas subjacentes seguintes, que permaneceram vivas, com um fragmento de sua intensidade original, e essas camadas podem dedicar-se, por trás do escudo protetor, à recepção das quantidades de estímulo que este deixou passar”(p.38). Esse “até certo ponto inorgânica” deve ser compreendido como uma metáfora, pois o mais apropriado seria pensar que essa camada externa, de tanto receber e barrar os estímulos, tornou-se insensível a estes, e ao mesmo tempo, protegeu as camadas mais internas. Então como continua Freud “através de sua morte a camada exterior salvou todas as camadas mais profundas de um destino semelhante, a menos que os estímulos que a atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo protetor”. Assim tão importante quanto receber estímulos, é proteger-se contra os mesmos. A questão da “morte” aqui, também, constitui-se uma metáfora, a sequência da frase assim levanta a hipótese. Fortes cargas de energia sempre existirão, e em virtude de sua quantidade e qualidade poderia representar uma ameaça à existência, ou à estrutura psíquica.

Referência
FREUD, S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920). Obras Completas de Psicanálise - volume XVIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.